sexta-feira, 23 de março de 2012


O CARTEL DA (DÁ) PULSÃO

Maria Aparecida Oliveira do Nascimento*
Psicanalista, Membro Efetivo do GREP.

A pulsão sempre foi um conceito obscuro e pouco inteligível para mim. Quando do estudo deste tema no Seminário de Metapsicologia a questão que se colocou inicialmente foi a pulsão de morte. Propus-me a escrever sobre ela como trabalho final de curso. No entanto fui impedida de pesquisá-la por um determinado tempo. Algo insistia em mim e em todos os momentos eu me via voltando a esta questão. Não saia dizer exatamente do que se tratava, mas restava algo que continuava me incomodando, me afetando e porque não dizer me contaminando. É “neste estado de peste1” que venho falar, ainda que de forma tímida do meu pequeno percurso no estudo deste conceito. E, quem sabe, contaminá-los também.
Neste ano de 2002 constituímos um cartel para o estudo da pulsão. Começamos com 5 pessoas e hoje estamos com 3, visto que em decorrência do movimento pulsional duas pessoas se desligaram.
Iniciamos com os Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905), onde o conceito de pulsão aparece pela primeira vez. A partir da escuta de pacientes neuróticos em sua clinica, Freud elaborou a teoria das pulsões para demonstrar que a sexualidade humana vai além daquela que rege os instintos nos animais, vai além da reprodução, demonstrando assim seu caráter eminentemente parcial. A pulsão não visa a reprodução, mas sim a satisfação.
Ela se presentifica de modo contínuo e independente do meio externo. Quanto à natureza da pulsão podemos dizer que é uma força poderosa, dinâmica e circulante, uma konstante Kraft, indeterminada, atemporal, arcaica e própria do ser vivo, e que se manifesta a todo o momento e se distingue, portanto, da necessidade, do instinto.
Qual seria então o estatuto da pulsão para o discurso psicanalítico?
A pulsão não é uma descoberta freudiana, mas uma produção teórica de Freud.
“O termo pulsão não designa uma realidade existente, mas um modo de falar de existentes; ele aponta para um conjunto de conceitos que formam a teoria psicanalítica”. (Garcia Roza, La, Acaso e Repetição em Psicanálise, p.14). Acrescento, principalmente os de inconsciente, recalque, defesa e resistência. No entanto, não é um conceito como os demais, visto que Freud, em 1924, vinte anos depois de formulado esse conceito, nos diz que a “teoria das pulsões é a parte mais importante da teoria psicanalítica embora, ao mesmo tempo, a menos completa” (Idem, p.14).
“A suposição de Freud é que a pulsão procura uma satisfação que já foi obtida um dia, na nossa pré-história individual, antes do interdito que nos tornou humanos. A partir de então, foi inibida quanto ao seu objetivo e obrigada a um caminho de aventuras chamado de triebschicksale – as vicissitudes da pulsão. Pela ameaça que trazia consigo, foi proibida de se apresentar diretamente aos olhos assustados do humano. Portadora do gozo e da morte, viu-se forçada a fazer-se representar pelos seus representantes para poder ter acesso ao mundo da subjetividade. A Vorstellung e o afeto são seus delegados, e é sobre eles que a psicanálise nos fala. A pulsão em si mesma, fica reservado o lugar do silêncio. Isso, porém, não significa que tenha sido suprimida, mas que, tal como os dragões mitológicos, foi condenada a viver reclusa numa caverna à entrada da qual ouvimos apenas os seus rugidos e sentimos o cheiro de enxofre que exala das suas narinas. Cada um de nós vive a ameaça da virgem que lhe tem de ser oferecida em sacrifício” (Garcia Roza, La, Acaso e Repetição em Psicanálise, p.17).
Já na Pulsão e suas Vicissitudes (1915) Freud descreve a pulsão como sendo “um conceito fronteiriço entre o psíquico e o somático, como um representante psíquico dos estímulos que se originam de dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida de exigência de trabalho que é imposta à mente”. Na tentativa de definir esse conceito, ainda obscuro para Freud, ele o aborda tanto no ângulo da fisiologia quanto da biologia.
Depois de um tempo de estudo deste tema comecei a me perguntar o que a pulsão tem a ver com uma outra questão, a da transmissão, visto que estava trabalhando num cartel, dispositivo de transmissão em psicanálise.
“A psicanálise nos coloca desde o início, no lugar da linguagem, e é por referencia a este lugar que ela nos fala, mesmo quando está se referindo aos corpos e ao mundo dos objetos. Referida à linguagem, a pulsão ocupa uma região de silencio. Situa-se num além. Refere-se ao corpo, mas não é corpo; está além da linguagem, mas a pressupõe. Conceito limite, a pulsão nos ameaça com seu silêncio teórico” (idem, p.19)
Mas, o que tem a ver pulsão e transmissão em psicanálise?
Segundo Aurélio Buarque de Holanda, transmissão é um ato ou efeito de transmitir(se), fazer passar de um ponto ou de um possuidor ou detentor para outro; transferir, comunicar por contágio, propagar. E é a partir desse lugar que pretendo transmitir para vocês parte do conteúdo que vimos estudando no cartel.
O cartel é uma invenção e um dos pilares de Lacan para sua Escola de Psicanálise. Cartel foi extraída da palavra latina “cardo”que significa “dobradiça”. Em sua formalização Lacan propõe que:
Três a cinco pessoas se elegem para realizar um trabalho que deve ter um produto próprio de cada um;
A conjunção se faz em torno do Mais-Um que, sendo um qualquer, deve ser alguém responsável por velar pelos efeitos do trabalho e provocar a sua elaboração; para prever os efeitos de cola, deve fazer a permutação no prazo estabelecido de um ano, no máximo dois; o progresso advém de se colocar a céu aberto tanto os resultados quanto às crises de trabalho.
Para Lacan, a condição para se fazer um cartel é “de ai colocar algo seu para a Escola, e não de ficar aí para si mesmo. Isto significando que o desejo esteja incluído, desejo de trabalho na Escola, de elaboração e de produção de saber. De fato são efeitos de sujeito que são esperados – sujeitos no trabalho”(Lima, Denise Riqueira Rennó & Rosa, Lázaro Elias., O cartel – pontos fundamentais de sua prática, Escola Brasileira de Psicanálise). E assim nos colocamos a trabalhar juntos, mas, cada um com sua questão.
Jorge Forbes propõe quatro posições possíveis ao sujeito na produção do saber analítico e diz que “este saber implica o sujeito”. Isto quer dizer que para que a Psicanálise se transmita é necessário que o emissor ou receptor se implique. “A Psicanálise não se transmite sem transferência, ou seja, sem que a pessoa coloque naquilo que lê, escreve, diz ou faz, algo de si” (Forbes, Jorge – As quatro posições subjetivas na produção do saber psicanalítico, in Revista Transmissão). Considera então quatro posições. São elas: a) autor conceitual ou nocional – assim como um pintor que cria uma nova forma de ver;
b) autor comentador – parecido ao pintor que retoma uma forma de ver;
c) crítico – como o crítico de arte;
d) idiota – aquele que não conseguindo de si, aliena-se no outro. “Forbes aponta que Lacan em seu texto Encore, chama de ‘besteiras’ o que cada um traz em si e necessita dar um endereçamento – só besteiras não tem lugar marcado neste mundo. Quando estas besteiras são tratadas por um ideal, geram um idiota, quando tratadas por uma causa muito diferente de um ideal geram um artista, um autor, um analisante, um analista, diferentes expressões dos efeitos do tratamento das besteiras por uma causa” (idem).
Forbes propõem uma questão: como favorecer a transmissão da psicanálise diminuindo o efeito da idiotia e privilegiando a causa? Para Lacan isto se dá através do cartel. Os cartéis são contrários à idiotia e poderão promover autores e críticos da psicanálise marcados pela subjetividade. Foi em que Lacan apostou.
Márcia Rosa propõe outra questão: “O que a psicanálise busca? Um saber com sabor. Saber este que está intrinsecamente ligado ao desejo do analista, pois para Lacan não há investigação se não se leva em conta o desejo.” Eric Laurent mostra que Lacan ao atrelar a formação do analista às formações do inconsciente, deixa sugerindo que a ‘formação do analista’, distinta da ‘produção do analista’, comporta um tempo de alienação no Outro, alienação que o leva a se fazer tolo do inconsciente. Já a ‘produção do analista’ pertenceria, em contrapartida a um tempo de separação, um tempo que comportaria, concluímos, interrogações sobre o desejo do Outro. Tratar-se-ia, então, de extrair um saber disso, de esclarecer a estrutura da versão do Outro em questão.
No entanto, o Outro não nos dá garantia de nada uma vez que é apenas Sujeito suposto Saber. Para tal se faz necessária uma elaboração dessa ausência de garantia, através de análise pessoal, da supervisão e do estudo teórico, pilares propostos por Freud, além do cartel, proposto por Lacan. “Se pensarmos na cena psicanalítica, nós, enquanto psicanalistas, somos testemunhas da descoberta do inconsciente realizada pelo psicanalisando. E não temos e nem podemos ter nenhum título de propriedade desta descoberta. É também por isso que só podemos falar ‘transmissão em psicanálise’ e não ‘transmissão da psicanálise’, pois não existem títulos de propriedade. Nós, no máximo, podemos estar no lugar de um porta-dor, de um transmissor, de um ser humano experiente que já passou e estará passando por uma experiência semelhante. Nós portamos uma possibilidade de propiciar que a expervivência “talvez” possa acontecer novamente.
O desejo é pois este “impulso para reproduzir alucinatoriamente uma satisfação original, isto é, um retorno a algo que já não é mais, a um objeto perdido cuja presença é marcada pela falta... O objeto do desejo é um objeto perdido, uma falta, e que esse objeto perdido continua presente como falta, procurando realizar-se através de uma série de substitutos que formam uma rede contingente mantendo a permanência da falta” (Roza, 1991).
O que incomoda e faz com que trabalhemos é a própria impossibilidade frente aos seminários, ou frente à sessão de psicanálise. Fica uma sobra, ou sobras que não foram assimiladas, assim como aconteceu na ‘expervivência de satisfação’. É isto que sobra que vai continuar pulsando e exigindo trabalho.

Bibliografia
BORGES, Fábio, A Peste; in Revista Reverso no.28, 1988, p.5
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda, Novo Dicionário da Lingua Portuguesa, Editora Nova Fronteira, RJ, 1975
FORBES, Jorge – As Quatro Posições Subjetivas na Produção do Saber Psicanalítico, in Revista Transmissão.
FREUD, Sigmund, Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade. Obras Completas, vol. VII, 1905, op.cit.
___. As pulsões e suas vicissitudes. Obras Completas, vol. XIV, 1915, op.cit.
GARCIA ROSA., Luiz Alfredo, Freud e o Inconsciente., Jorge Zahar Editores, RJ, 1991.
____, Acaso e Repetição em Psicanálise – uma introdução à teoria das pulsões. Jorge Zahar Editores, RJ, 1987, p.11-28
___. Metapsicologia Freudiana, Vol. III, Jorge Zahar Editores, RJ, 1996.
JORGE, Marco Antonio Coutinho, Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan. Vol. 1, as bases conceituais; Jorge Zahar Editores, RJ, 2000.
LAPLANCHE, J. PONTALIS, J.B., Vocabulário de Psicanálise, Martins Fontes Editora, SP, 1983.
LIMA, Denise Riqueira Rennó & Roza, Lázaro Elias, O Cartel – pontos fundamentais de sua prática. Escola Brasileira de Psicanálise.
MASSARA, Guilherme, Anotações da palestra realizada no GREP em 29/05/2002.
PIMENTA, Maria Isabel Cunha, A Pulsão e a Clínica – de Freud a Lacan. Texto apresentado na aula inaugural do Grep, Março de 2002.
ROSA, Márcia., A investigação em Psicanálise, in Almanaque, Ano 3, no.6, junho de 2001.
SOUSA, Laura Falci., Pulsão e Gozo. Texto apresentado na aula inaugural do Grep, março de 2002.




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