A CRIANÇA COMO SINTOMA OU SINTOMA
DA CRIANÇA?
Trabalho apresentado na Jornada do Grep em 2004.
Eliana Olimpio
Unitermos: sintoma, desejo, verdade do par parental, gozo
Resumo: a autora apresenta fragmentos de dois casos clínicos de adolescentes e utiliza como referência o texto de
Jacques-Alain Miller, em “A criança entre a mulher e a mãe” e “Duas Notas Sobre a Criança”, de Lacan, que
tratam do sintoma da criança no que concerne a estrutura familiar.
Apresentação dos casos
Caso 1 - MC, uma jovem de
18 anos, educada, aparentando certa timidez. Ao primeiro contato manteve os
olhos dirigidos às próprias mãos, cujos dedos movimentavam-se desordenados,
como se tornassem um lápis que escrevesse algo invisível no ar. As vezes eu a
percebia procurando “freiar” conscientemente os movimentos dos dedos, mas logo
em seguida se dispersava e esses iniciavam novamente o movimento frenético. A
mãe que a acompanhava foi quem falou por ela. A história familiar revelou o que
se segue: mãe e pai religiosos tinham como norma planejar toda a rotina
familiar. Para tanto, a mãe pré-estabeleceu que ao engravidar deixaria o
trabalho para dedicar-se exclusivamente à família. O nascimento da menina foi
muito festejado por todos e a mãe se desdobrava nos cuidados maternos. O pai,
por seu lado, desdobrou-se a trabalhar para prover a pequena família do
sustento necessário. Viajava a serviço e retornava ao lar quinzenalmente, nos
finais de semana. A filha crescia saudável, bem cuidada, orgulho da mãe que
fazia valer sua disponibilidade integral como dona de casa e mãe. A menina já
tinha dois anos quando o apego exagerado a mãe começou a chamar a atenção dos
familiares. Desde a época que engatinhava se arrastava atrás da mãe
segurando-lhe a perna, o pé, o vestido. Tinha de manter um pedaço do corpo da
mãe em contato consigo. Visitas ao médico era problemático, porque a menina
desesperava-se em pranto, não permitindo ser tocada. A mãe alegava que a menina
ainda era muito novinha, mas que quando crescesse se interessaria por outras
atividades e aceitaria melhor pessoas estranhas. MC tanto se agarrava à mãe que
o casal não pode realizar o planejamento de naquela época Ter outro filho
porque a mãe ficava absolutamente por conta da menina. Quando MC chegou aos 6 anos teve dificuldade
de ingressar na escola porque chorava muito se ficasse em local onde não
pudesse visualizar a mãe. A escola indicou, então, ludoterapia para MC e, a mãe
no seu furor de ser completa, leu tudo sobre o que é ludoterapia, marcou uma
entrevista com uma profissional e se deu por satisfeita: “Brincaria ela mesma
com a criança!”
A primeira crise
de MC ocorreu aos 15 anos. Freqüentava a igreja com a mãe e um jovem se
aproximou e disse que queria namorar com ela. Encolheu-se junto ao corpo da mãe
e apressou-se para ir para casa. A mãe justificou-se dizendo tratar-se de sua
timidez, da dificuldade que ela tinha de fazer amigos e se relacionar com as
pessoas. A partir daí não mais saia de casa, mantinha-se encolhida no quarto
escuro, não falava com ninguém.
Está em
atendimento psiquiátrico desde então, faz uso de anti-depressivo associado à
análise. Não são raras as vezes em que ao falar de si dizia: “minha mãe acha
que... minha mãe quer...”, e quando questionada sobre: “O que você acha? O que
você quer?” – ela se embaraça e não sabe responder. Atualmente vem ao
consultório sozinha, mas no percurso liga várias vezes para a mãe para
confirmar se ela está lá. Recentemente
me perguntou: “Sou sedutora?... Minha mãe
é! Eu vou ser!” - A mãe e o pai também entraram para processo
psicoterapêutico e esperam assim ajudar à filha.
CASO 2 – RC, 17 anos, relativamente obesa, pele do rosto marcada por pequenas
manchas que sugeriam lesões por fricção com as unhas, educada e aparentando
certa timidez. Ao primeiro contato manteve os olhos dirigidos para os objetos
do consultório, corpo jogado sobre o sofá. A voz “embotada” me parecia efeito
colateral dos medicamentos que utilizava – anti-depressivo associado a
anti-psicótico. A história familiar revelou o que se segue: Quando a mãe
engravidou de PC, vivia uma crise conjugal que já se arrastava por dois anos,
desde o nascimento do primeiro filho. Naquela ocasião o marido reiniciou os
estudos, o que indisponibilizava tempo para a família, pois nos finais de
semana queria descansar. A esposa se viu obrigada a assumir os afazeres
domésticos, os cuidados maternos e a realização profissional sem a colaboração
do marido. Foi época difícil que culminaria em separação, que só foi adiada
devido ao nascimento de PC. Desde que soubera que estava grávida a mãe rejeitou
a criança “pois já se sobrecarregava
sozinha com um filho, imagine dois!”
- quando a menina nasceu a mãe decidiu que não cuidaria da criança e não
a amamentou para forçar o pai a esses cuidados. Foi solicitado ajuda de
terceiros e contratado babás, porque o pai, efetivamente não dava conta da
situação, mesmo que ele se esforçasse. Quando a menina tinha 5 anos se
separaram. PC se lembra que nas visitas instituídas pelo juiz, o pai levava ela
e o irmão para comerem coisas gostosas, mas raivosa, diz que o pai a abandonou.
O pai casou-se novamente e adotou uma enteada como filha. PC foi morar com o
pai, mas começou a dar mostras de
agressividade quanto a irmã adotiva (1 ano mais nova que ela). O novo casal se
esforçava para tratar as filhas igual, mas PC nunca aceitou a irmã e a
madrasta. Assim, retornou novamente à casa da mãe, depois à casa dos avós, dos
tios, de alguém. O processo
psicoterapêutico iniciou-se naquela época e passou por vários psicólogos. Foi
encaminhada a mim pela psiquiatra. Voltara a morar com a mãe, mas esta dizia
que PC estava insuportável. PC “cobra”
um senso de justiça que muitas vezes foge da razão comum – se prometerem
algo a ela, ela exige o cumprimento mesmo fora da possibilidade de quem
prometeu; se algum colega de sala cola, ela dedura; se envolve em brigas com os
colegas defendendo o que no ponto de vista dela é o mais fraco; discute com a
professora por não chamar a atenção dos colegas quando estes conversam em sala
de aula... Vê o mundo como hostil, e por isso criou amigos imaginários. Seu
vestuário compõe-se de negro ou roxo e os acessórios incluem caveiras. A maior parte do tempo tranca-se no quarto,
lê, compõe poemas e ouve músicas.
Em entrevista o
pai me disse: “Desisti da minha filha!”
A mãe por sua
vez: “Que ela more comigo, mas que fique
na dela!”
Atualmente PC
mora com o pai, a madrasta e a enteada. Deixou o uso dos medicamentos há 6
meses. O irmão está há 2 anos no exterior em intercâmbio cultural. A mãe teve
diversos namorados, mas não estabeleceu relação estável com nenhum.
Numa sessão, PC
me disse que queria ganhar uma flor azul – “Adoro
flores azuis!” - Falou então que “não sabe porque, mas sente que é afetada
pelas pessoas e que sabe que ela também as afeta. Só não sabe porque ela só
sabe afetar com espinhos, nunca com uma rosa azul”. Permaneci calada. Ela
deitou-se espojada no sofá e eu disse a ela.
-
“Deite-se no divã PC, e diga-me tudo o que
lhe vier à mente...”
Ela olhou para o
divã e disse: - “Mas se eu for para lá,
parece que vou deixar você sozinha aqui!”
Eu disse: - “Mas eu vou estar aqui com você!”
Imediatamente ela
foi para o divã e falou sobre o quanto já pensou em morrer, mas que “quer ficar por aqui”. Eu encerrei a
sessão: - “Ficamos por aqui!”
Considerações teóricas:
Jacques-Alain
Miller, no texto “A Criança entre a Mulher e a Mãe”, destaca:
“É preciso, que a criança não sature, para a mãe, a falta em que se
apoia o seu desejo. O que isso quer dizer? Que a mãe só é suficientemente boa
se não o é em demasia se os cuidados que ela dispensa à criança não a desviam
de desejar enquanto mulher”.[1]
O caso 1, aponta
para uma adolescente que quando criança respondeu à subjetividade da mãe e assim permaneceu em suas fases de
desenvolvimento. MC pode ser tomada na fantasia da mãe como objeto a, objeto
“que satura o modo de falta em que se especifica o desejo da mãe”[2]. A
criança não pode ser tudo para o sujeito materno que tem que ser mãe e tem que
ser outras coisas, e, principalmente, ser mulher. Neste caso, a mãe deixa de
trabalhar para ocupar-se da filha e acha-se tão onipotente que acredita que ela
mesma pode ser a ludoterapeuta da filha.
Quando a criança é tudo para a mãe, ela pode ser pensada como objeto
fetiche, já que, segundo Miller, a criança “exerce a função de velar o nada,
que é, o falo enquanto ele falta à mulher”[3].
Neste sentido, a criança preenche ocupando-se como gozo, no lugar de objeto.
Como mãe, a mãe de MC sentiu-se tão plena que não necessitou Ter outros filhos.
É na adolescência, quando depara com o real do sexo no pedido de namoro do
rapaz, que MC embaraça-se e deflagra-lhe o sintoma depressão, que vem para
evitar que ela encare seu próprio ser mulher, seu próprio desejo. Durante o
processo analítico o que se percebeu foi a mudança da pergunta de MC de: “O que
quer a minha mãe de mim?” , para “O que quer
a minha mãe, mulher?”.
No caso 2, o que
se percebe é o extremo: uma mãe, que deixa de ser mãe para ser só mulher.
Miller compara-a a Medeia, figura mitológica, que ao perceber que Jasão foi
embora sacrifica os filhos/objeto para atingir o homem/pai. Para a mãe, a filha
é um dejeto, e seu desejo é exclusivo de algo além dela (da criança). Na divisão
mãe/mulher, a criança também divide pai/homem e é dividida como sujeito não
completo, não todo.
Alguém me
perguntou como fica a paternidade, como fica o lugar do pai nessa questão, ou,
fazendo uma paródia, onde a “criança entraria entre o homem e o pai”. No texto
ora estudado, Miller fala de “o pai humanizar o desejo”, ou seja, a função do
pai enquanto
“realizar uma mediação entre as exigências abstratas da ordem, o desejo
anônimo do discurso universal , de um lado, e o que decorre, para a criança, do
particular do desejo da mãe”. Seria um pai que nomearia o desejo como o desejo
de uma mulher; não de um ser sobrenatural, de um deus, ou da cultura. Ele tem
que estar ali encarnado como homem e como pai, e não apenas como o “papai sabe
tudo”[4].
Ora, um pai que sabe tudo é um grande olho, ou
um grande ouvido – aquele pai, por exemplo, de Shereber. Miller diz: “o
universal nu e cru é inteiramente alienante: aliena a verdade sempre particular
do sujeito. Ao mesmo tempo, não se pode viver só no particular; por isso há uma
manobra...”[5] . Vê-se
ai a importância dessa função paterna: aquele que sabe do seu próprio desejo, e
que, e através dele transmite o desejo
da cultura. O que constitui o sujeito é o desejo. É preciso que ele, o sujeito
criança, seja particularizado no desejo e no gozo e é isso o que se
transmite. O pai do caso 1 pareceu-nos
bastante provedor, mas passivo, não interpelando a criança em sua relação com a
mãe e não demonstrando seu próprio desejo. O pai do caso 2 procura não ser
faltoso ocupando o lugar de pai e mãe, e assim, esforça-se por cuidar da filha,
a introduz numa nova família, até que “desiste dela”. Neste caso, o que me parece é que a madrasta,
mesmo que tardiamente ocupou o lugar da mãe e estabeleceu a entrada de PC no
Édipo. PC a trata com animosidade, mas não deixa de interpelá-la como
mulher: - “O que meu pai viu naquela bruxa?”
Lacan, no texto
“A Direção da Cura e os Princípios do seu Poder”, afirma que o desejo do homem
é o desejo do Outro e que este “Outro detêm as chaves do objeto desejado – do
que pela afirmação de que seu primeiro objeto é ser reconhecido pelo Outro”[6].
Freud, em “O
Sentido do Sintoma (1916), diz que o
sintoma traz a verdade do sujeito. “Os sintomas têm um sentido e se relacionam
com as experiências do paciente”[7] e
enquanto símbolo pode ser decifrado. Na criança a verdade não é dela enquanto
sujeito, mas diz respeito à verdade do par parental, já que seu sintoma aponta
para o que há de encoberto na estrutura familiar. Nos dois casos, nesse
sentido, fez-se necessário, abordar as adolescentes na vertente do seu sintoma,
mas localizando-o, se no funcionamento familiar ou se no próprio sujeito.
Essas
adolescentes chegaram a análise como objeto, mas ali elas têm que ser tomadas
como sujeito. O que importa é a captura do sintoma na transferência, e ai
interrogar a posição do sujeito com relação ao seu sintoma. A localização
subjetiva é o processo de constituição do sujeito do inconsciente. O que se
buscou foi a presentificação do desejo das adolescentes, implicando-as no seu
gozo.
Espera-se uma
revirada do sintoma antigo para a aparição de um novo – o sintoma
transferencial – e levar o sujeito a saber que esse Outro é furado, pois o
objeto a também lhe escapa.
Referências bibliográficas:
FREUD, Sigmund. Além
do Princípio de Prazer (1920). In: Edição Standard Brasileira das
Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago,
1977. V. XVIII
______. As
Pulsões e suas Vicissitudes (1915). In: Edição Standard Brasileira das
Obras
Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
V. XVI
______. O
Sentido dos sintomas (1916). In: Edição Standard Brasileira das Obras
Completas. Rio de
Janeiro: Imago, 1977. V. XVI
______. Inibições,
Sintomas e Ansiedade (1926 [1925]). In: Edição Standard Brasileira das
Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago,
1977. V. XVI
LACAN, Jacques, Duas
notas sobre a criança. Ornica?m revue du champ freudien, n. 37,
avril-juin 1986, p.13 e 14. Traduzido
por Ana Lydia Santiago.
______. O
Seminário – Os Quatro Conceitos Fundamentais de Psicanálise, livro 11. Rio
de
Janeiro: Zahar, 1985.
______. Escritos.
São Paulo: Perspectiva, 1978
MILLER,
Jacques-Alain, A Criança entre a Mulher e a Mãe. Traduzido por Cristiana
P. de
Mattos, Cristina Vidigal, Inês Seabra e
Suzana Barroso.
[1] MILLER, Jacques-Alain, A Criança
entre a Mulher e a Mãe. Traduzido por Cristiana P. de
Mattos, Cristina
Vidigal, Inês Seabra e Suzana Barroso.
[2] Ibid
[3] ibid
[4] ibid
[7] FREUD, Sigmund. O Sentido dos sintomas (1916).
In: Edição Standard Brasileira das Obras
Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
V. XVI
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