terça-feira, 27 de novembro de 2012


A CRIANÇA COMO SINTOMA OU SINTOMA DA CRIANÇA?

Trabalho apresentado na Jornada do Grep  em  2004.
Eliana Olimpio

Unitermos: sintoma, desejo, verdade do par parental, gozo


Resumo: a autora apresenta fragmentos de dois casos clínicos de adolescentes  e utiliza como referência o texto de Jacques-Alain Miller, em “A criança entre a mulher e a mãe” e  “Duas Notas Sobre a Criança”, de Lacan, que tratam do sintoma da criança no que concerne a estrutura familiar.


Apresentação dos casos

Caso 1 - MC, uma jovem de 18 anos, educada, aparentando certa timidez. Ao primeiro contato manteve os olhos dirigidos às próprias mãos, cujos dedos movimentavam-se desordenados, como se tornassem um lápis que escrevesse algo invisível no ar. As vezes eu a percebia procurando “freiar” conscientemente os movimentos dos dedos, mas logo em seguida se dispersava e esses iniciavam novamente o movimento frenético. A mãe que a acompanhava foi quem falou por ela. A história familiar revelou o que se segue: mãe e pai religiosos tinham como norma planejar toda a rotina familiar. Para tanto, a mãe pré-estabeleceu que ao engravidar deixaria o trabalho para dedicar-se exclusivamente à família. O nascimento da menina foi muito festejado por todos e a mãe se desdobrava nos cuidados maternos. O pai, por seu lado, desdobrou-se a trabalhar para prover a pequena família do sustento necessário. Viajava a serviço e retornava ao lar quinzenalmente, nos finais de semana. A filha crescia saudável, bem cuidada, orgulho da mãe que fazia valer sua disponibilidade integral como dona de casa e mãe. A menina já tinha dois anos quando o apego exagerado a mãe começou a chamar a atenção dos familiares. Desde a época que engatinhava se arrastava atrás da mãe segurando-lhe a perna, o pé, o vestido. Tinha de manter um pedaço do corpo da mãe em contato consigo. Visitas ao médico era problemático, porque a menina desesperava-se em pranto, não permitindo ser tocada. A mãe alegava que a menina ainda era muito novinha, mas que quando crescesse se interessaria por outras atividades e aceitaria melhor pessoas estranhas. MC tanto se agarrava à mãe que o casal não pode realizar o planejamento de naquela época Ter outro filho porque a mãe ficava absolutamente por conta da menina.  Quando MC chegou aos 6 anos teve dificuldade de ingressar na escola porque chorava muito se ficasse em local onde não pudesse visualizar a mãe. A escola indicou, então, ludoterapia para MC e, a mãe no seu furor de ser completa, leu tudo sobre o que é ludoterapia, marcou uma entrevista com uma profissional e se deu por satisfeita: “Brincaria ela mesma com a criança!”
A primeira crise de MC ocorreu aos 15 anos. Freqüentava a igreja com a mãe e um jovem se aproximou e disse que queria namorar com ela. Encolheu-se junto ao corpo da mãe e apressou-se para ir para casa. A mãe justificou-se dizendo tratar-se de sua timidez, da dificuldade que ela tinha de fazer amigos e se relacionar com as pessoas. A partir daí não mais saia de casa, mantinha-se encolhida no quarto escuro, não falava com ninguém.
Está em atendimento psiquiátrico desde então, faz uso de anti-depressivo associado à análise. Não são raras as vezes em que ao falar de si dizia: “minha mãe acha que... minha mãe quer...”, e quando questionada sobre: “O que você acha? O que você quer?” – ela se embaraça e não sabe responder. Atualmente vem ao consultório sozinha, mas no percurso liga várias vezes para a mãe para confirmar se ela está lá.  Recentemente me perguntou: “Sou sedutora?... Minha mãe é! Eu vou ser!”  -  A mãe e o pai também entraram para processo psicoterapêutico e esperam assim ajudar à filha.


CASO 2 – RC, 17 anos, relativamente obesa, pele do rosto marcada por pequenas manchas que sugeriam lesões por fricção com as unhas, educada e aparentando certa timidez. Ao primeiro contato manteve os olhos dirigidos para os objetos do consultório, corpo jogado sobre o sofá. A voz “embotada” me parecia efeito colateral dos medicamentos que utilizava – anti-depressivo associado a anti-psicótico. A história familiar revelou o que se segue: Quando a mãe engravidou de PC, vivia uma crise conjugal que já se arrastava por dois anos, desde o nascimento do primeiro filho. Naquela ocasião o marido reiniciou os estudos, o que indisponibilizava tempo para a família, pois nos finais de semana queria descansar. A esposa se viu obrigada a assumir os afazeres domésticos, os cuidados maternos e a realização profissional sem a colaboração do marido. Foi época difícil que culminaria em separação, que só foi adiada devido ao nascimento de PC. Desde que soubera que estava grávida a mãe rejeitou a criança “pois já se sobrecarregava sozinha com um filho, imagine dois!”  - quando a menina nasceu a mãe decidiu que não cuidaria da criança e não a amamentou para forçar o pai a esses cuidados. Foi solicitado ajuda de terceiros e contratado babás, porque o pai, efetivamente não dava conta da situação, mesmo que ele se esforçasse. Quando a menina tinha 5 anos se separaram. PC se lembra que nas visitas instituídas pelo juiz, o pai levava ela e o irmão para comerem coisas gostosas, mas raivosa, diz que o pai a abandonou. O pai casou-se novamente e adotou uma enteada como filha. PC foi morar com o pai, mas começou  a dar mostras de agressividade quanto a irmã adotiva (1 ano mais nova que ela). O novo casal se esforçava para tratar as filhas igual, mas PC nunca aceitou a irmã e a madrasta. Assim, retornou novamente à casa da mãe, depois à casa dos avós, dos tios, de alguém.  O processo psicoterapêutico iniciou-se naquela época e passou por vários psicólogos. Foi encaminhada a mim pela psiquiatra. Voltara a morar com a mãe, mas esta dizia que PC estava insuportável. PC “cobra”  um senso de justiça que muitas vezes foge da razão comum – se prometerem algo a ela, ela exige o cumprimento mesmo fora da possibilidade de quem prometeu; se algum colega de sala cola, ela dedura; se envolve em brigas com os colegas defendendo o que no ponto de vista dela é o mais fraco; discute com a professora por não chamar a atenção dos colegas quando estes conversam em sala de aula... Vê o mundo como hostil, e por isso criou amigos imaginários. Seu vestuário compõe-se de negro ou roxo e os acessórios incluem caveiras.  A maior parte do tempo tranca-se no quarto, lê, compõe poemas e ouve músicas.
Em entrevista o pai me disse: “Desisti da minha filha!”
A mãe por sua vez: “Que ela more comigo, mas que fique na dela!”
Atualmente PC mora com o pai, a madrasta e a enteada. Deixou o uso dos medicamentos há 6 meses. O irmão está há 2 anos no exterior em intercâmbio cultural. A mãe teve diversos namorados, mas não estabeleceu relação estável com nenhum.
Numa sessão, PC me disse que queria ganhar uma flor azul – “Adoro flores azuis!”  - Falou então que “não sabe porque, mas sente que é afetada pelas pessoas e que sabe que ela também as afeta. Só não sabe porque ela só sabe afetar com espinhos, nunca com uma rosa azul”. Permaneci calada. Ela deitou-se espojada no sofá e eu disse a ela.
-        “Deite-se no divã PC, e diga-me tudo o que lhe vier à mente...”
Ela olhou para o divã e disse: - “Mas se eu for para lá, parece que vou deixar você sozinha aqui!”
Eu disse: - “Mas eu vou estar aqui com você!”
Imediatamente ela foi para o divã e falou sobre o quanto já pensou em morrer, mas que “quer ficar por aqui”. Eu encerrei a sessão: - “Ficamos por aqui!”

Considerações teóricas:

Jacques-Alain Miller, no texto “A Criança entre a Mulher e a Mãe”, destaca:
“É preciso, que a criança não sature, para a mãe, a falta em que se apoia o seu desejo. O que isso quer dizer? Que a mãe só é suficientemente boa se não o é em demasia se os cuidados que ela dispensa à criança não a desviam de desejar enquanto mulher”.[1]

O caso 1, aponta para uma adolescente que quando criança respondeu à subjetividade da mãe  e assim permaneceu em suas fases de desenvolvimento. MC pode ser tomada na fantasia da mãe como objeto a, objeto “que satura o modo de falta em que se especifica o desejo da mãe”[2]. A criança não pode ser tudo para o sujeito materno que tem que ser mãe e tem que ser outras coisas, e, principalmente, ser mulher. Neste caso, a mãe deixa de trabalhar para ocupar-se da filha e acha-se tão onipotente que acredita que ela mesma pode ser a ludoterapeuta da filha.  Quando a criança é tudo para a mãe, ela pode ser pensada como objeto fetiche, já que, segundo Miller, a criança “exerce a função de velar o nada, que é, o falo enquanto ele falta à mulher”[3]. Neste sentido, a criança preenche ocupando-se como gozo, no lugar de objeto. Como mãe, a mãe de MC sentiu-se tão plena que não necessitou Ter outros filhos. É na adolescência, quando depara com o real do sexo no pedido de namoro do rapaz, que MC embaraça-se e deflagra-lhe o sintoma depressão, que vem para evitar que ela encare seu próprio ser mulher, seu próprio desejo. Durante o processo analítico o que se percebeu foi a mudança da pergunta de MC de: “O que quer a minha mãe de mim?” , para “O que quer  a minha mãe, mulher?”.

No caso 2, o que se percebe é o extremo: uma mãe, que deixa de ser mãe para ser só mulher. Miller compara-a a Medeia, figura mitológica, que ao perceber que Jasão foi embora sacrifica os filhos/objeto para atingir o homem/pai. Para a mãe, a filha é um dejeto, e seu desejo é exclusivo de algo além dela (da criança). Na divisão mãe/mulher, a criança também divide pai/homem e é dividida como sujeito não completo, não todo.

Alguém me perguntou como fica a paternidade, como fica o lugar do pai nessa questão, ou, fazendo uma paródia, onde a “criança entraria entre o homem e o pai”. No texto ora estudado, Miller fala de “o pai humanizar o desejo”, ou seja, a função do pai enquanto
“realizar uma mediação entre as exigências abstratas da ordem, o desejo anônimo do discurso universal , de um lado, e o que decorre, para a criança, do particular do desejo da mãe”. Seria um pai que nomearia o desejo como o desejo de uma mulher; não de um ser sobrenatural, de um deus, ou da cultura. Ele tem que estar ali encarnado como homem e como pai, e não apenas como o “papai sabe tudo”[4].

 Ora, um pai que sabe tudo é um grande olho, ou um grande ouvido – aquele pai, por exemplo, de Shereber. Miller diz: “o universal nu e cru é inteiramente alienante: aliena a verdade sempre particular do sujeito. Ao mesmo tempo, não se pode viver só no particular; por isso há uma manobra...”[5] . Vê-se ai a importância dessa função paterna: aquele que sabe do seu próprio desejo, e que, e através dele  transmite o desejo da cultura. O que constitui o sujeito é o desejo. É preciso que ele, o sujeito criança, seja particularizado no desejo e no gozo e é isso o que se transmite.  O pai do caso 1 pareceu-nos bastante provedor, mas passivo, não interpelando a criança em sua relação com a mãe e não demonstrando seu próprio desejo. O pai do caso 2 procura não ser faltoso ocupando o lugar de pai e mãe, e assim, esforça-se por cuidar da filha, a introduz numa nova família, até que “desiste dela”.  Neste caso, o que me parece é que a madrasta, mesmo que tardiamente ocupou o lugar da mãe e estabeleceu a entrada de PC no Édipo. PC a trata com animosidade, mas não deixa de interpelá-la como mulher:  - “O que meu pai viu naquela bruxa?”

Lacan, no texto “A Direção da Cura e os Princípios do seu Poder”, afirma que o desejo do homem é o desejo do Outro e que este “Outro detêm as chaves do objeto desejado – do que pela afirmação de que seu primeiro objeto é ser reconhecido pelo Outro”[6].

Freud, em “O Sentido do Sintoma (1916),  diz que o sintoma traz a verdade do sujeito. “Os sintomas têm um sentido e se relacionam com as experiências do paciente”[7] e enquanto símbolo pode ser decifrado. Na criança a verdade não é dela enquanto sujeito, mas diz respeito à verdade do par parental, já que seu sintoma aponta para o que há de encoberto na estrutura familiar. Nos dois casos, nesse sentido, fez-se necessário, abordar as adolescentes na vertente do seu sintoma, mas localizando-o, se no funcionamento familiar ou se no próprio sujeito.

Essas adolescentes chegaram a análise como objeto, mas ali elas têm que ser tomadas como sujeito. O que importa é a captura do sintoma na transferência, e ai interrogar a posição do sujeito com relação ao seu sintoma. A localização subjetiva é o processo de constituição do sujeito do inconsciente. O que se buscou foi a presentificação do desejo das adolescentes, implicando-as no seu gozo.

Espera-se uma revirada do sintoma antigo para a aparição de um novo – o sintoma transferencial – e levar o sujeito a saber que esse Outro é furado, pois o objeto a também lhe escapa.

Referências bibliográficas:

FREUD, Sigmund. Além do Princípio de Prazer (1920). In: Edição Standard Brasileira das
        Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1977. V. XVIII
______. As Pulsões e suas Vicissitudes (1915). In: Edição Standard Brasileira das Obras
        Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1977. V. XVI
______. O Sentido dos sintomas (1916). In: Edição Standard Brasileira das Obras
Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1977. V. XVI
______. Inibições, Sintomas e Ansiedade (1926 [1925]). In: Edição Standard Brasileira das
        Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1977. V. XVI
LACAN, Jacques, Duas notas sobre a criança. Ornica?m revue du champ freudien, n. 37,
       avril-juin 1986, p.13 e 14. Traduzido por Ana Lydia Santiago.
______. O Seminário – Os Quatro Conceitos Fundamentais de Psicanálise, livro 11. Rio de 
       Janeiro: Zahar, 1985.
______. Escritos. São Paulo: Perspectiva, 1978
MILLER, Jacques-Alain, A Criança entre a Mulher e a Mãe. Traduzido por Cristiana P. de  
      Mattos, Cristina Vidigal, Inês Seabra e Suzana Barroso.





[1] MILLER, Jacques-Alain, A Criança entre a Mulher e a Mãe. Traduzido por Cristiana P. de  
      Mattos, Cristina Vidigal, Inês Seabra e Suzana Barroso.

[2] Ibid
[3] ibid
[4] ibid
[5] ibid
[6] LACAN, Jacques. Escritos. São Paulo: Perspectiva, 1978
[7] FREUD, Sigmund. O Sentido dos sintomas (1916). In: Edição Standard Brasileira das Obras
        Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1977. V. XVI



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