Revista Época, 4 de junho de 2001, p. 60 e 61
Por Cristiane Segato
Para o neurologista Saul Cypel,
está provado que crianças hiperativas são fruto de pais ansiosos e desencontros
familiares contornáveis.
Há três décadas, Saul Cypel,
especialista em neurologia infantil observa crianças hiperativas. É impossível
não notar a chegada de uma delas ao consultório. O alvoroço logo toma conta da
sala de espera. Quase simultaneamente arrastam cadeiras, avançam sobre lápis e
canetas, pulam sem parar. A inquietude e o interesse pulverizado costumam ser
interpretados pelos pais como sinais de vivacidade. Para Cypel, de 58 anos, pai
de quaro filhas adultas, podem ser indícios de hiperatividade e dificuldade de
atenção. O problema é sério. Aparece nos primeiros meses de vida e desencadeia
dificuldades de aprendizado e convivência social ao longo da vida. O
neurologista explica que o distúrbio pode ser revertido com acompanhamento
adequado e, só em alguns casos, prescrição de medicamentos.
EPOCA: Por que as crianças de hoje se tornam hiperativas e desatentas? A culpa
é dos pais ou do meio em que vivem?
Saul Cypel: Tentar atribuir
culpas não é uma boa estratégia. O comportamento da criança nasce da conjunção
de fatores familiares com individuais. E difícil determinar a origem exata do
problema. Vemos famílias com três filhos nas quais apenas um é hiperativo. Tudo
depende da interação de cada criança com o ambiente em que vive. No entanto,
notamos semelhanças na história dos hiperativos. Em geral, são crianças geradas
em uma gravidez difícil, num ambiente cheio de ansiedade. Já nos primeiros
meses o bebe mostra-se inquieto. Com 2, 3 meses tem dificuldade para dormir.
Acorda muitas vezes à noite. A solicitação da criança é tamanha que os pais
ficam exauridos.
EPOCA: O que eles fazem de errado?
Cypel: Quando começam a se
movimentar mais, as crianças criam tal desassossego que é impossível deixa-las
sozinhas. Os pais não se sentem seguros
sobre o que devem fazer e não conseguem colocar limites. Os filhos crescem sem
noção do que podem e do que não podem fazer. Tornam-se ansiosos e hiperativos.
EPOCA: Dormir com o bebê para tranquiliza-lo é má escolha?
Cypel: A criança que não consegue
dormir sozinha perturba muito a vida dos pais. Lá pelas tantas, um deles
resolve trazê-la para a cama ou então instalar-se no quarto dela. Isso gera
confusão. Quem dorme com a mãe no quarto é bebezinho. Depois dos 4 meses,
filhos tem de dormir sozinhos. Se a criança volta para a cama dos pais com 1
ano ou mais, passa a assumir a condição de uma criança mais nova. Os pais a
colocam numa situação regredida, infantilizada. Ela cresce dependente, insegura
e apegada.
EPOCA: Em geral os pais percebem que á algo errado?
Cypel: Geralmente são
inexperientes e não tem ideia do que seja o comportamento normal de uma
criança. Alguns pais se sentem orgulhosos. Acham que o filho é mais esperto
porque mexe na TV; puxa os enfeites da mesa, quebra a decoração, arrasta
cadeiras. Confundem excesso de agitação com a energia da infância. Muitos chegam
ao consultório com o filho de 6 anos terrivelmente agitado. A criança não
consegue ficar sentada, empurra a cadeira de rodinhas pela sala. Os pais não se
incomodam e dizem que só vieram porque a professora recomendou. Depois de cinco
minutos quem está em volta da criança nota que ela está além do limite. Os pais
realmente não percebem. Para eles, está tudo bem.
EPOCA: É verdade que o problema é
mais comum entre os meninos?
Cypel: A cada quatro crianças
hiperativas, aparece uma menina. É uma constatação internacional. Há algumas
hipóteses para tentar explicar isso. Os meninos, pela própria natureza do sexo
são mais ativos, inquietos. Basta ver as brincadeiras. Eles se atracam, correm
o tempo todo. Na hora do recreio as meninas normalmente conversam em grupos,
enquanto os meninos chutam a lata de lixo. Para se divertir eles precisam de
atividade física mais intensa.
EPOCA: A hiperatividade pode ser resultado de um desarranjo biológico?
Cypel: As causas emocionais são
frequentes. É preciso esclarecer, em cada caso, quanto existe de componente
neurológico, quanto de emocional. Às vezes é difícil estabelecer essa
distinção.
EPOCA: Limites estabelecidos desde cedo livram a criança da hiperatividade?
Cypel: A criança é uma pedra
bruta. Precisa ser lapidada. Para isso tem pai e mãe para dizerem o que pode e
o que não pode fazer. Se esse aprendizado for conduzido corretamente, os pais
terão todas as chances de ver a criança crescer com o comportamento adequado.
Crianças hiperativas apresentam grande dificuldade de convivência. Atormentam
as pessoas e acabam sendo rejeitadas. Para muitos pais, a separação entre
limite e agressão é tão tênue que eles não sabem como agir. Acham que dizer
“não” a um filho é extremamente violento. Ai a coisa vai desandando.
EPOCA: E as causas orgânicas?
Cypel: Quando existem, podem
estar ligadas a múltiplas situações. Traumatismo de crânio, infecções do
sistema nervoso, falta de oxigenação no momento do parto. Do ponto de vista
prático, fica difícil demonstrar a existência de lesão orgânica. Nesses casos,
as crianças apresentam uma diminuição na concentração de alguns
neurotransmissores. Um deles é a dopamina. A substancia interfere no mecanismo
de atenção. Está provado que pouca dopamina leva à diminuição da atenção.
EPOCA: Nesse caso, o que é melhor: remédio ou terapia?
Cypel: Medicamentos são indicados
quando a hiperatividade e a desatenção são muito intensas e trazem prejuízos de
aprendizagem e dificuldade de convívio social. Muitas vezes os pais conseguem
reverter a situação sem remédios, apenas com a orientação de um médico. As
crianças respondem muito bem. É como se elas estivessem ansiosas por socorro.
As orientações são básicas, mas de difícil execução. Os pais não tem habilidade
nem segurança para segui-las. Sentem-se incompetentes para promover mudanças. O
melhor, então, é a terapia familiar ou de casal.
EPOCA: Hiperatividade é reversível?
Cypel: Na maior parte dos caos,
sim. A alteração de comportamento das crianças indica que alguma coisa vai mal
na família. Quando a luz vermelha acende é a oportunidade de repensar como o
grupo está vivendo. Encontramos pais que trabalham o dia todo, crianças com
assistência familiar precária, mesmo com a presença da mãe em casa.
EPOCA: E qual é a solução?
Cypel: Sempre é tempo de refletir
sobre os relacionamentos. Entender como cada um funciona no papel de pai e mãe.
O casal deixa de ter vida social porque está absorvido pelo filho que não dá
sossego. Distancia-se dos amigos para alimentar a solicitação da criança. É
importante que os pais saibam que o problema tem solução. Alguns hiperativos
caminham para a delinquência. Mas felizmente, essa não é a regra.
Cypel diz que os americanos
exageram no uso de medicamentos para controlar crianças hiperativas. “Eles tratam
os sintomas em vez de atacar as causas”, afirma.
SAUL CYPEL
Formação: Professor de
neurologia infantil da Faculdade de Medicina da USP.
Atividade: Coordenador da
área de Saúde da Criança do Hospital Albert Einstein.
Obra: Autor do livro A
criança com déficit de atenção e hiperatividade.
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