quinta-feira, 24 de julho de 2014

A ERA DO BEBÊ TURBINADO


Revista Época, 4 de junho de 2001, p. 60 e 61

Por Cristiane Segato

Para o neurologista Saul Cypel, está provado que crianças hiperativas são fruto de pais ansiosos e desencontros familiares contornáveis.

Há três décadas, Saul Cypel, especialista em neurologia infantil observa crianças hiperativas. É impossível não notar a chegada de uma delas ao consultório. O alvoroço logo toma conta da sala de espera. Quase simultaneamente arrastam cadeiras, avançam sobre lápis e canetas, pulam sem parar. A inquietude e o interesse pulverizado costumam ser interpretados pelos pais como sinais de vivacidade. Para Cypel, de 58 anos, pai de quaro filhas adultas, podem ser indícios de hiperatividade e dificuldade de atenção. O problema é sério. Aparece nos primeiros meses de vida e desencadeia dificuldades de aprendizado e convivência social ao longo da vida. O neurologista explica que o distúrbio pode ser revertido com acompanhamento adequado e, só em alguns casos, prescrição de medicamentos.

EPOCA: Por que as crianças de hoje se tornam hiperativas e desatentas? A culpa é dos pais ou do meio em que vivem?

Saul Cypel: Tentar atribuir culpas não é uma boa estratégia. O comportamento da criança nasce da conjunção de fatores familiares com individuais. E difícil determinar a origem exata do problema. Vemos famílias com três filhos nas quais apenas um é hiperativo. Tudo depende da interação de cada criança com o ambiente em que vive. No entanto, notamos semelhanças na história dos hiperativos. Em geral, são crianças geradas em uma gravidez difícil, num ambiente cheio de ansiedade. Já nos primeiros meses o bebe mostra-se inquieto. Com 2, 3 meses tem dificuldade para dormir. Acorda muitas vezes à noite. A solicitação da criança é tamanha que os pais ficam exauridos.

EPOCA: O que eles fazem de errado?

Cypel: Quando começam a se movimentar mais, as crianças criam tal desassossego que é impossível deixa-las sozinhas.  Os pais não se sentem seguros sobre o que devem fazer e não conseguem colocar limites. Os filhos crescem sem noção do que podem e do que não podem fazer. Tornam-se ansiosos e hiperativos.

EPOCA: Dormir com o bebê para tranquiliza-lo é má escolha?

Cypel: A criança que não consegue dormir sozinha perturba muito a vida dos pais. Lá pelas tantas, um deles resolve trazê-la para a cama ou então instalar-se no quarto dela. Isso gera confusão. Quem dorme com a mãe no quarto é bebezinho. Depois dos 4 meses, filhos tem de dormir sozinhos. Se a criança volta para a cama dos pais com 1 ano ou mais, passa a assumir a condição de uma criança mais nova. Os pais a colocam numa situação regredida, infantilizada. Ela cresce dependente, insegura e apegada.

EPOCA: Em geral os pais percebem que á algo errado?

Cypel: Geralmente são inexperientes e não tem ideia do que seja o comportamento normal de uma criança. Alguns pais se sentem orgulhosos. Acham que o filho é mais esperto porque mexe na TV; puxa os enfeites da mesa, quebra a decoração, arrasta cadeiras. Confundem excesso de agitação com a energia da infância. Muitos chegam ao consultório com o filho de 6 anos terrivelmente agitado. A criança não consegue ficar sentada, empurra a cadeira de rodinhas pela sala. Os pais não se incomodam e dizem que só vieram porque a professora recomendou. Depois de cinco minutos quem está em volta da criança nota que ela está além do limite. Os pais realmente não percebem. Para eles, está tudo bem.

EPOCA: É verdade que o problema é mais comum entre os meninos?

Cypel: A cada quatro crianças hiperativas, aparece uma menina. É uma constatação internacional. Há algumas hipóteses para tentar explicar isso. Os meninos, pela própria natureza do sexo são mais ativos, inquietos. Basta ver as brincadeiras. Eles se atracam, correm o tempo todo. Na hora do recreio as meninas normalmente conversam em grupos, enquanto os meninos chutam a lata de lixo. Para se divertir eles precisam de atividade física mais intensa.

EPOCA: A hiperatividade pode ser resultado de um desarranjo biológico?

Cypel: As causas emocionais são frequentes. É preciso esclarecer, em cada caso, quanto existe de componente neurológico, quanto de emocional. Às vezes é difícil estabelecer essa distinção.

EPOCA: Limites estabelecidos desde cedo livram a criança da hiperatividade?

Cypel: A criança é uma pedra bruta. Precisa ser lapidada. Para isso tem pai e mãe para dizerem o que pode e o que não pode fazer. Se esse aprendizado for conduzido corretamente, os pais terão todas as chances de ver a criança crescer com o comportamento adequado. Crianças hiperativas apresentam grande dificuldade de convivência. Atormentam as pessoas e acabam sendo rejeitadas. Para muitos pais, a separação entre limite e agressão é tão tênue que eles não sabem como agir. Acham que dizer “não” a um filho é extremamente violento. Ai a coisa vai desandando.

EPOCA: E as causas orgânicas?

Cypel: Quando existem, podem estar ligadas a múltiplas situações. Traumatismo de crânio, infecções do sistema nervoso, falta de oxigenação no momento do parto. Do ponto de vista prático, fica difícil demonstrar a existência de lesão orgânica. Nesses casos, as crianças apresentam uma diminuição na concentração de alguns neurotransmissores. Um deles é a dopamina. A substancia interfere no mecanismo de atenção. Está provado que pouca dopamina leva à diminuição da atenção.

EPOCA: Nesse caso, o que é melhor: remédio ou terapia?

Cypel: Medicamentos são indicados quando a hiperatividade e a desatenção são muito intensas e trazem prejuízos de aprendizagem e dificuldade de convívio social. Muitas vezes os pais conseguem reverter a situação sem remédios, apenas com a orientação de um médico. As crianças respondem muito bem. É como se elas estivessem ansiosas por socorro. As orientações são básicas, mas de difícil execução. Os pais não tem habilidade nem segurança para segui-las. Sentem-se incompetentes para promover mudanças. O melhor, então, é a terapia familiar ou de casal.

EPOCA: Hiperatividade é reversível?

Cypel: Na maior parte dos caos, sim. A alteração de comportamento das crianças indica que alguma coisa vai mal na família. Quando a luz vermelha acende é a oportunidade de repensar como o grupo está vivendo. Encontramos pais que trabalham o dia todo, crianças com assistência familiar precária, mesmo com a presença da mãe em casa.

EPOCA: E qual é a solução?

Cypel: Sempre é tempo de refletir sobre os relacionamentos. Entender como cada um funciona no papel de pai e mãe. O casal deixa de ter vida social porque está absorvido pelo filho que não dá sossego. Distancia-se dos amigos para alimentar a solicitação da criança. É importante que os pais saibam que o problema tem solução. Alguns hiperativos caminham para a delinquência. Mas felizmente, essa não é a regra.

Cypel diz que os americanos exageram no uso de medicamentos para controlar crianças hiperativas. “Eles tratam os sintomas em vez de atacar as causas”, afirma.

SAUL CYPEL

Formação: Professor de neurologia infantil da Faculdade de Medicina da USP.

Atividade: Coordenador da área de Saúde da Criança do Hospital Albert Einstein.

Obra: Autor do livro A criança com déficit de atenção e hiperatividade.

 

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