segunda-feira, 10 de novembro de 2014

O CARTEL DA (DÁ) PULSÃO


Maria Aparecida Oliveira do Nascimento*

 

A pulsão sempre foi um conceito obscuro e pouco inteligível para mim. Quando do estudo deste tema no Seminário de Metapsicologia a questão que se colocou inicialmente foi a pulsão de morte. Propus-me a escrever sobre ela como trabalho final de curso. No entanto fui impedida de pesquisa-la por um determinado tempo. Algo insistia em mim e em todos os momentos eu me via voltando a esta questão. Não sabia dizer exatamente do que se tratava, mas restava algo que continuava me incomodando, me afetando e porque não dizer, me contaminando. É “nesse estado de peste”[1] que venho falar, ainda que de forma tímida do meu pequeno percurso no estudo deste conceito. E, quem sabe, contaminá-los também.


 
Neste ano de 2002 constituímos um cartel para o estudo da pulsão. Começamos com cinco pessoas e hoje estamos com três, visto que em decorrência do movimento pulsional duas pessoas se desligaram.


Iniciamos com os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), onde o conceito de pulsão aparece pela primeira vez. A partir da escuta de pacientes neuróticos em sua clínica, Freud elaborou a teoria das pulsões para demonstrar que a sexualidade humana vai além daquela que rege os instintos nos animais, vai além daquela que rege os instintos nos animais, vai além da reprodução, demonstrando assim seu caráter eminentemente parcial. A pulsão não visa a reprodução, mas sim a satisfação.

 
Ela se presentifica de modo contínuo e independente do meio externo. Quanto à natureza da pulsão podemos dizer que é uma força poderosa, dinâmica e circulante, uma Konstante kraft, indeterminada, atemporal, arcaica e própria do ser vivo, e que se manifesta a todo o momento e se distingue, portanto, da necessidade, do instinto.

 
Qual seria então o estatuto dea pulsão para o discurso psicanalítico?

A pulsão não é uma descoberta freudiana, mas uma produção teórica de Freud.[2] “O termo ‘pulsão’ não designa uma realidade existente, mas um modo de falar de existentes; ele aponta para um conjunto de outros conceitos que formam a teoria psicanalítica”. Acrescento, principalmente, os de inconsciente, recalque, defesa e resistência. No entanto, não é um conceito como os demais, visto que Freud, em 1924 – vinte anos depois de formulado esse conceito, nos diz que “a teoria das pulsões e a parte mais importante da teoria psicanalítica, embora ao mesmo tempo a menos completa”.[3]

 
“A suposição de Freud é que a pulsão procura uma satisfação que foi obtida um dia, na nossa pré-história individual, antes do interdito que nos tornou humanos. A partir de então, foi inibida quanto ao seu objetivo e obrigada a um caminho de aventuras chamado de Triebschiksale – as vicissitudes da pulsão. Pela ameaça que trazia consigo, foi proibida de se apresentar diretamente aos olhos assustados do humano. Portadora do gozo e da morte, viu-se forçada a fazer-se representar pelos seus representantes para poder ter acesso ao mundo da subjetividade. A Vorstellung e o afeto são delegados, e é sobre eles que a psicanálise nos fala. À pulsão em si mesma fica reservado o lugar do silêncio. Isso, porém, não significa que não tenha sido suprimida, mas que, tal como os dragões mitológicos, foi condenada a viver reclusa numa caverna à entrada da qual ouvimos apenas os seus rugidos e sentimos o cheiro de enxofre que exala das suas narinas. Cada um de nós vive a ameaça da virgem que tem de ser oferecida em sacrifício”. [4]

 
Já na Pulsão e suas Vicissitudes (1915) Freud descreve a pulsão como sendo “um conceito fronteiriço entre o psíquico e o somático, como um representante psíquico dos estímulos que se originam de dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida de exigência de trabalho que é imposta à mente”. Na tentativa de definir esse conceito, ainda obscuro para Freud, ele o aborda tanto no ângulo da fisiologia quanto da biologia.

Depois de um tempo de estudo deste tema comecei a me perguntar o que a pulsão tem a ver com uma outra questão, a da transmissão, visto que estava trabalhando num cartel, dispositivo de transmissão da psicanálise.

 
“A psicanálise nos coloca desde o início no lugar da linguagem e é por referencia a este lugar que ela nos fala, mesmo quando está se referindo aos corpos e ao mundo dos objetos. Referida à linguagem, a pulsão ocupa uma região de silencio. Situa-se num além. Refere-se ao corpo, mas não é corpo; está além da linguagem mas a pressupõe. Conceito limite, a pulsão nos ameaça com seu silêncio teórico”. [5]

 
Mas, o que tem a ver pulsão e transmissão em psicanálise?

Segundo Aurélio Buarque de Holanda, transmissão é um ato ou efeito de transmitir(-se), fazer passar de um ponto ou de um possuidor ou detentor para outro; transferir, comunicar por contágio, propagar. E é a partir deste lugar que pretendo transmitir para vocês parte do conteúdo que vimos estudando no cartel.

 
O cartel é uma invenção e um dos pilares de Lacan para sua Escola de Psicanálise. Cartel foi extraída da palavra latina “cardo” que significa “dobradiça”. Em sua formalização Lacan propõe que:

- Três a cinco pessoas se elegem para realizar um trabalho que deve ter um produto próprio de cada um;
- A conjunção se faz em torno do Mais-um que, sendo um qualquer, deve ser alguém responsável por velar pelos efeitos do trabalho e provocar sua elaboração;
- Para prevenir os efeitos de cola, deve fazer a permutação no prazo estabelecido de um ano, no máximo dois;

- O progresso advém de se colocar a céu aberto tanto os resultados quanto as crises de trabalho.

 
Para Lacan a condição para se fazer um cartel é “de ai colocar algo seu para a Escola e não de ficar ai para si mesmo. Isto significando que o desejo esteja incluído desejo de trabalho na Escola, de elaboração e de produção de saber. De fato são efeitos de sujeito que são esperados – sujeitos no trabalho.”[6] E assim nos colocamos a trabalhar juntos mas, cada um com sua questão.

 
* MARIA APARECIDA OLIVEIRA DO NASCIMENTO é psicóloga, psicanalista.
Contato: Fone: (31) 3287.5976
 

 


[1] Borges, Fábio., A Peste in Revista Reverso no. 28, 1988, p. 5
[2] Garcia Roza, La. Acaso e repeticao em psicanálise, p. 14.
[3] Idem, p. 11
[4] Idem, p. 17
[5] Idem, p. 19.
 
[6] Lima, Denise Rigueira Rennó & Rosa, Lázaro Elias., O Cartel – pontos fundamentais de sua prática. Escola Brasileira de Psicanálise.

2 comentários:

  1. Oi Eliana.
    Adorei a publicação!
    Lembra-se de mim?
    Aprendo muito com você e para você ver até hoje!
    Um beijo enorme!!!

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    1. Sonia,
      fico feliz em revê-la (virtualmente).
      Apareça, pessoalmente.
      Um beijo
      Eliana

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