Bernard Nominê
Eu
vou partir deste pequeno ritornelo que me surge não sei de onde: “papai, mamãe,
a babá e eu”. Creio que é o refrão de uma cançãozinha medíocre do após guerra
que não tem estritamente nenhum interesse a não ser, para mim, o de
introduzi-los numa estrutura de quarteto que vou tentar desdobrar diante de
vocês. Não é por acaso que entre papai, mamãe e eu, eu precisei incluir a babá.
Neste quarteto há, eu penso, um ponto de estrutura.
A
babá, no Littré é, “uma moça encarregada de cuidar das crianças”. Esta
personagem que duplica o papel da mãe tem sempre um lugar importante no romance
familiar.
Na
maioria dos casos, ela duplica a mãe para a criança. Pensem na querida Nanie do
“homem dos Lobos”. É frequente que seja através da babá que a criança aceite
descobrir a sexualidade da mãe: é o caso para a babá do “pequeno Hans”. Às
vezes esta babá faz o papel de uma verdadeira iniciadora: pensem em Fraülein
Peter e em Lina, as duas governantas do “homem dos ratos”. Além disso, a babá duplica a mãe diante do
pai. Ela é então aquela com a qual o pai poderia se satisfazer em amores
ancilares culpados, o que deu lugar a um certo número de nascimentos e inspirou
mais de um romance.
Freud,
em seus tratamentos, é sempre atento ao papel da governanta; fazia parte dos
costumes da época. Hoje não faz mais! Mas sempre acontece esta necessária
divisão da personagem materna que o papel da babá imaginarizava com perfeição.
Se
Freud é sensível a isto, é porque esta divisão responde a uma exigência de
estrutura: a do Édipo. Num texto que se intitula: “Sobre o mais comum dos
rebaixamentos na vida amorosa” (Depreciação do objeto na esfera do amor), ele
estuda isto de um modo notável. Ele tenta ai uma interpretação estrutural da
impotência masculina e, de modo mais geral, ele trata do comportamento do homem
diante do objeto sexual feminino.
A
pulsão sexual (“corrente sensual”) se apoia sobre as pulsões do Eu (“corrente
terna”) dirigidas para o objeto materno. Ou seja, por causa disso, o objeto sexual
vai dever representar, apagando-o o objeto materno, evitando assim que a
corrente sensual apareça dirigida incestuosamente para a mãe.
Temos
então ai a possibilidade de escrever um primeiro trio que servirá de prelúdio
para a escrita do quarteto final.
Homem à
mulher / mãe
A impotência psíquica se produz no
homem quando ele reconhece no objeto sexual algo do objeto materno que não
teria sido apagado. Ou seja, se a divisão não está do lado mulher (mulher/mãe),
a barra da impotência vem tocar o lado homem. De modo mais geral – nos diz
Freud – o homem tem tendência a acentuar, em suas escolhas de objeto, uma
nítida diferença entre o objeto sexual e a mãe, escolhendo um objeto sexual
rebaixado, logo o mais à distancia do amor idealizado pela mãe.
“Quase sempre, o homem se sente
limitado em sua atividade sexual pelo respeito pela mulher e não desenvolve sua
plena potência senão com um objeto sexual rebaixado. O que é fundado, por outro
lado, no fato de que intervêm em seus objetivos sexuais componentes perversos
que ele não se permite satisfazer com uma mulher que ele respeita.
Não estamos ainda muito longe de uma
descrição bastante fenomenológica do comportamento sexual masculino. Mas Freud
vai mais longe. Ele aborda a questão sob um ângulo mais estrutural quando ele
nos diz:
Apesar disso parecer
estranho, creio que se deveria considerar a possibilidade de que uma coisa
qualquer na natureza mesma da pulsão sexual não seja favorável à realização da
plena satisfação.
Isso quer dizer que para Freud o
objeto final da pulsão sexual não é mais o objeto originário e nunca mais o
será. Dai a insatisfação essencial, já que, por causa de uma coisa qualquer, o
objeto a ser reencontrado para satisfazer a pulsão nunca mais será o objeto
perdido.
Em “alguma coisa”, Lacan a cerne
indexando-a com uma letrinha inefável, é o objeto a.
O que o homem visa através de uma
mulher é certamente a mãe. Mas, pelo fato da estrutura de linguagem que se
acomoda mal com o gozo, mesmo esta idealização da mãe não daria conta daquilo
de que se trata, a saber, do irrepresentável – isto é perdido para sempre – do
gozo do corpo da mãe.
Podemos então, a partir de agora,
completar a escrita do trio significante de base:
homem à mulher / mãe
a
Homem, mulher, mãe não são senão
significantes e enquanto tais que eles entram em função no romance familiar.
Mas o “alguma coisa” que está no fundamento deste trio não se inscreve no mesmo
nível. A verdade está sob a barra, ela não se inscreve com o significante.
Então aparece assim que o verdadeiro
parceiro do sujeito masculino é o objeto a, ou seja, seu gozo em direção ao
qual ele é perversamente orientado, como Freud já o deixava prever e como Lacan
o pontuará no final de seu ensino. Mas, se ele é perversamente orientado para o
seu gozo, ele é separado dele pelo uso de seu fantasma. É o que se escreve $ <> a e que se lê como a divisão do
sujeito diante do objeto que causa seu desejo.
De onde finalmente, a escrita
desenvolvida do trio de significantes:
homem à mulher / mãe
$ <> a
O quarto termo do quarteto de
significantes que eu havia anunciado é evidentemente a criança. Se a ligarmos
ao trio é para tentar dar conta de como ela entra ou não na economia familiar e
para tentar saber (esta era a questão que Philippe Lacadée levantava da última
vez) o que se transmite desta mitologia familiar do lado da criança.
Um primeiro texto de Lacan esclarece
este problema, é aquele que se intitula: “O mito individual do neurótico”
(1953): “A constelação do sujeito é formada, na tradição familiar, pela relação
de um certo número de traços que especificam a união dos pais.” Lacan se refere
à muito rica observação de “O homem dos ratos”.
O romance familiar é a principio uma
história que se arrasta na família segundo a qual o pai teria feito um
casamento vantajoso desposando uma mulher rica. Ele teria para tal, abandonado
aquela que orientava seu amor, a saber, a filha do açougueiro, uma moça pobre.
Além disso, o pai, verdadeiro “rato
de jogo” teria tido sua honra salva – ele tinha jogado com o dinheiro do
batalhão – por um amigo que teria pago sua dívida que ele sempre teria se
omitido em reembolsar.
Lacan nos faz observar que Freud
obtém a sedação dos sintomas de seu paciente – preocupações obsessivas com os
prazos de pagamento quanto a uma dívida a ser paga – quando ele as relaciona
com o romance familiar, a saber, a dupla dívida do pai. No fundo, o comentário
de Lacan neste texto visa – sem que no entanto nessa época ele o diga desta
forma – demonstrar que o sintoma do homem dos ratos representa a verdade do par
parental. Além disso, se apoiando no texto de Freud, ele aborda também uma
aproximação estrutural das vicissitudes da vida sexual.
Ele nos diz assim que o equilíbrio
do neurótico exigiria:
1) Que ele se faça reconhecer em sua
função viril sem o recurso a sentimentos de impostura, do tipo: “se eu ocupo
este lugar – eu sou indigno dele – eu o usurpo e então eu estou em dívida...”;
2) Que ele possa gozar de uma maneira
unívoca de um objeto sexual.
Ora, precisamente o que Lacan
observa é que:
a) Se o sujeito macho assume sua
função, então é o objeto que se divide, notadamente sob a forma do par
significante mulher rica/mulher pobre.
b) Se o sujeito faz o esforço de
unificar sua vida sexual, então lhe é necessário o recurso a um double para assumir o encontro com o
objeto único.
Lacan ilustra esta segunda
eventualidade com a autobiografia de Goethe na qual Goethe conta como ele
superou uma maldição que lhe interditava encontrar a mulher de seus sonhos se
fazendo acompanhar por um amigo e vestindo as roupas do rapaz pobre.
Então, divisão de um
lado ou divisão do outro, mas divisão obrigatória.
Hoje, à luz do ensino
mais tardio de Lacan nós poderíamos dizer que este texto ilustra que “não há
relação sexual”, ou seja, que não há bom parceiro significante do sujeito no
encontro sexual.
Que não haja relação
sexual é algo com o qual o homem dos ratos não se habitua. O que seus sintomas
testemunham é justamente do esforço sobrehumano que ele faz para tentar se
inscrever com significantes e mais particularmente com um significante: o rato,
herdado em parte do pai que é um “rato de jogo” e que lhe permitiria medir o
gozo (um rato, um florim, um coito). Que o sintoma ceda quando Freud o articula
com o romance familiar poderia se explicar pelo fato de que o romance familiar,
que escreve os avatares da relação pai-mãe vem revezar com o sintoma na sua
tarefa de recobrir a inexistência da relação homem-mulher.
Mas então uma questão
ética se coloca. Devemos nos contentar com esta solução freudiana que fixa o
sujeito no infantil?
Continuemos nosso
caminho com Lacan.
É precisamente neste
texto sobre o Mito individual do
neurótico que Lacan escreve: “Há no neurótico uma situação de quarteto que
se renova sem cessar, mas que não está num único plano”.
A situação de quarteto é esta
divisão obrigatória:
- seja do lado homem diante do
objeto unívoco.
- seja do lado mulher entre o objeto
desejado e o objeto amado.
Se Lacan diz que isso
faz quarteto é porque para além do mito individual, do romance familiar, está a
inscrição de uma estrutura quaternária e “não apenas sobre um único plano”, já
que há um plano significante - o par homem-mulher - e um plano que é aquele da estrutura e
precisamente aquela do fantasma no lugar de significado.
homem à mulher
$ <> a
Esta escrita dá conta do
que Lacan enunciará mais tarde em seu seminário Mais... ainda. Ao saber que, quando um homem aborda a mulher o que
ele aborda é a causa de seu desejo, o que faz “do ato de amor a perversão
polimorfa do macho”.
Então, dizer que “não há
relação sexual” é dizer também que uma mulher, por outro lado não entra nesta
relação com os mesmos direitos. Uma mulher não faz do homem um objeto a que causa seu desejo. Se “ela entra em
função do encontro sexual – diz Lacan – é enquanto que mãe”. Lacan também disse
que as mulheres não tinham perversão, mas que elas tinham filhos.
Eis algo que vai nos
permitir considerar seriamente a escrita deste quarto significante no quarteto:
homem, mulher, mãe, filho.
Por que não evocar o pai
nesta série?
Pois bem, justamente
porque o pai não faz exatamente parte do quarteto. O pai é uma função que se
deduz do que Lacan vai nomear pai-versão num dos seus últimos seminários RSI.
“Um pai não tem direito ao respeito, senão ao amor, a não ser que o dito amor,
o dito respeito seja (vocês não vão acreditar nos seus ouvidos) pai-versamente
orientado, ou seja, faça de uma mulher o objeto a que causa seu desejo...”[1]
Eis a famosa pai-versão.
O que se escreve:
homem à mulher
$ <> a
A pergunta que nos fazemos é a de
saber o que faz com que uma mulher possa se acomodar com este lugar que ela
ocupa na pai-versão. Um certo número não se acomoda nela, mas são aquelas que
querem ser amadas por si mesmas e não por aquele “para além” que é este lugar
que elas ocupam no fantasma do homem como objeto de gozo.
Lacan responde em parte à pergunta
quando ele nos diz, na sequencia desta citação: “(...) mas o que uma mulher
a-colhe disso assim não tem nada a ver na questão. O de que ela se ocupa, é de
outros objetos a que são os filhos
(...)”.
Então a pai-versão do pai
responderia o desejo de filho na mãe. Vamos escrever então ao lado do primeiro
quaternário, um segundo e nós obtemos os quatro significantes ordenados do
quarteto de significantes. [2]
homem à mulher
/ mãe à filho
$ <> a $ a
Se este segundo quaternário funciona
sozinho, ou seja, se ele não é sustentado pelo primeiro que assegura a
pai-versão, então o risco é de que o filho encarne a verdade do objeto do
fantasma da mãe tal como Lacan o indicava em sua carta a Jenny Aubry, ou seja,
lhe traga o que a fará “toda”. E o que a faria
“toda” (nesta eventualidade em que este quaternário não seja sustentado
pelo quaternário da pai-versão)? Sem dúvida não o falo, mas seu ser que a
criança encarnaria subornado pelo fantasma de uma mãe “toda” encontrando no seu
filho seu completo de ser do mesmo modo que na parte esquerda do matema, onde o
sujeito masculino busca seu complemento de ser.
Então, se a pai-versão é a
orientação de um pai para uma mulher que causa seu desejo, permitam-me evocar a
psicose como uma MÃE-VERSÃO, onde uma mãe em posição de sujeito masculino está
orientada para seu filho que lhe torna “imediatamente acessível àquilo que
falta ao sujeito masculino, o próprio objeto de sua existência aparecendo no
real”.[3]
O futuro não é tão sombrio quando a
mãe suporta esta divisão que a separa entre uma mulher que ela é de um lado e
uma mãe que ela é do outro e que a faz “não toda”.
Evidentemente este corte que eu
marquei entre mulher e mãe não diz grande coisa desta zona de sombra, desta
passagem de uma mulher a uma mãe. Me parece que, recolhendo testemunhos de
análises de mulheres estéreis que ficam grávidas na ocasião de uma adoção, ou
na ocasião da análise, ou de outra coisa, poderíamos avançar um pouco na
questão. Poderíamos nos perguntar também o que acontece quando a ciência se
desenvolve e permite algo como uma mãe portadora. Mas deixemos isso de lado e
sigamos nosso caminho.
Examinemos nosso matema.
Nos estávamos prevendo um trio de
significantes: o pai, a mãe, o filho. E eis que percebemos que um dos
significantes se desdobrou e nós chegamos num quarteto de significantes
ordenados em dois pares e sub-tendidos por uma estrutura orientada de $ em
direção a a.
A primeira observação que se pode
fazer a propósito desta estrutura é que ela é toda orientada por este $
<> a sob a barra. Se alguma
coisa se transmite na genealogia de uma família, para além do ballet dos
significantes que organizam o romance familiar, não é simplesmente esta
orientação estrutural do $ em direção ao seu a?
Porque depois de tudo – é a minha
segunda observação – estes significantes que estão abaixo, Lacan nos mostrou
claramente em seu Mito individual do neurótico que podíamos fazê-los dançar, a
partir do momento em que respeitamos a orientação do matema $ <> a que o subtende.
Minha terceira observação é que três
significantes, dos quais um é desdobrado fazem quatro. Isso não deixa de
lembrar a amarração a quatro do nó borromeano de Lacan. Para que o nó segure,
um dos três deve ou assegurar a amarração - é a amarração implícita - ou ser
desdobrado para assegurar a amarração explícita. No nó borromeano, Lacan amarra
o Real, o Simbólico e o Imaginário e ele faz esta observação de que Freud não
tinha esta noção, mas de que ele deveria bem ter uma suspeita dela. “Em Freud
os três não seguram; eles estão simplesmente colocados um sobre o outro, mas o
que ele fez, ele acrescentou um quarto laço... é o complexo de Édipo”.
Afinal, o complexo de Édipo, a
historinha tal como a contamos desde Freud, não é uma colocação em significantes
para imaginarizar a estrutura que é a da pai-versão?
Me parece que é o que Lacan nos
deixa compreender quando ele nos diz em R.S.I. (11 de março de 1975): “Só os
significantes copulam entre si no inconsciente”. Se nós podemos compreender que
“só os significantes copulam entre si no inconsciente”, nós podemos admitir que
neste quarteto ordenado de significantes, o essencial é que um possa assegurar
a amarração estando desdobrado.
Podemos considerar que o um qualquer
possa se dividir sem no entanto inventar uma nova perversão? Se sim, esta
escrita dá conta de uma realidade clínica e ela pode trazer consequências para
a interpretação?
Para tentar abordar esta questão,
vou trazer uma primeira vinheta clínica.
1. CHARLES-AUGUSTE, O INVENTOR
Criança por volta dos dez anos, ele
foi levado por seus pais por problemas escolares. Ele também se queixa de que
na escola ele fica sozinho, ele não consegue ter amigos.
Desde as primeiras entrevistas,
Charles faz um desenho que se torna rapidamente repetitivo. É uma espécie de
estrutura feita com dois elementos simétricos que só ficam de pé e juntos
graças a um sistema complicado de imãs. Segundo ele, trata-se de um prédio.
O pai se preocupa muito com seu
filho e me telefona frequentemente, a tal ponto que fui levado a marcar um
encontro com ele. Ele me conta então a historia da constelação familiar que
presidiu o nascimento de Charles. Grávida de Charles, a mãe tem uma ligação com
um amante. O pai passa muito mal neste momento, ele tem crises de epilepsia.
Charles continua a me desenhar seus
edifícios espantosos, desafiando a lei da gravidade e não se segurando senão
com imãs. Os desenhos vão parar quando eu faço Charles notar que imã (aimant)
vem de amar (aimer).
Ele me traz então um primeiro sonho
em que ele luta com uma víbora (vipère), que eu pontuo como vi-père. Ele me
responde: “É o pai (père) que dá a vida (vie)”. Ele vai retomar isso um pouco mais tarde para
fazer a avaliação de nossos encontros que ele quer concluir. Ele me propõe
então um esquema.
Houve o imã (aimant), o que acontece
entre o pai e a mãe. Houve vie-père (víbora; vida-pai), é o pai que dá a vida
ao filho. Entre o filho e a mãe, eu coloco pontilhados porque até o momento,
não se sabe.
Vai suceder então um pesadelo no
qual gigantes esqueléticos são atacados por monstros viscosos que transformam
em visgo tudo o que eles tocam. Com pressa de acabar com o enigma dos
pontilhados ele me diz: “O visgo é a mãe”.
As relações na escola melhoram. Ele
me assinala que há uma menina da qual ele tem horror: ela é um pouco como ele,
bastante isolada.
Charles começa a arrumar amigos que
ele surpreende com uma invenção fabulosa que ele, aliás, me traz na sessão: é
uma pinça telescópica de “lego” que se erige como um diabo saindo de sua caída
e que é destinada a pegar objetos miúdos e até mesmo a pinçar ocasionalmente a
bunda da colega da frente. Charles está sempre imaginando sistemas
estupefativos, por exemplo uma pistola à base de eletroímã que, no lugar de
atirar um projétil atiraria um fluxo magnético que mandaria para ele o objeto
visado. Para construir seus projetos ele passa seu tempo contando e medindo;
ele se lembra dos problemas metafísicos que muito cedo o duplo decímetro lhe
causava. Quando ele caia na divisão 2, ele deveria ler 2 ou 3? Já que, segundo ele,
isso era como os séculos: o primeiro século fica entre zero e cem, depois de
100 começa o segundo século até 200... etc. problema agudo para uma criança
dessa idade, que já se formula a questão do limite, ou seja, da exceção. Para
empurrá-lo em seus entrincheiramentos, eu lhe proponho uma versão simplificada
do paradoxo de Zenão, ele já o conhecia!... ele pensa que pode-se sair dele com
a ajuda de uma lupa que ele figura com um encarte em seu desenho: “Com uma
lupa, poderia se ver este pequeno resto que interessa a todo o mundo”.
Neste momento, a mãe aproveita as
férias pequenas para manda-lo para um estágio: “Aprender a aprender”.
Ele obedece facilmente porque é um
menino gentil que finge responder à demanda da mãe. Mas enfim, diante de mim,
ele reivindica o direito ao fracasso: “Os adultos dizem sempre que seus
fracassos lhes serviram de lição. Como é que eu poderei aprender se não me
deixam fracassar?”
Enfim, voltamos ao problema que faz
visgo entre sua mãe e ele, a saber, a escola. E ele me diz: “É preciso que eu
descole”. Ele me propõe um esquema novo: seu objetivo é ir à lua. Eu lhe lembro
que na escola ele se refugia na lua. “Então, se a lua é a escola, eu me faço
pegar por detrás”. Finalmente ele conclui: “O visgo é minha mãe, mas sou também
eu que colo. É como um tubo de cola: se eu apoio sobre ele e além disso eu tiro
a tampa... eu poderia não tirar a tampa”.
Então eu arrisco uma pergunta: “Numa
mãe, a tampa ficaria onde?” ele me responde na lata: “Na escola, é claro!”
O que podemos construir a partir das
coordenadas deste caso?
No momento da gravidez a mãe, para
evitar a divisão, arranja um amante. O pai, aliás desaparece em crises de
epilepsia: isso diz que a divisão está do lado masculino; é preciso dois, o pai
de Charles e o amante para assegurar a pai-versão. O que Charles fareja de
longe já que, em seu esqueminha triangular ele mostra uma divisão significante
no nível do pai que é: - amante de um lado; aquele que lhe dá a vida de outro.
O papel do amante é o de ser
orientado pai-versamente. Mas, justamente, ele não é o pai. Entretanto, a
problemática fálica de Charles atesta que a metáfora paterna funciona. Ela
funciona graças ao amante. Amante do qual Charles se apodera para fazer sintoma
no casal familiar que se une em torno de suas dificuldades.
Ele evita assim o perigo de ser pego
no visgo materno e eu não penso que haja problema para ele quanto a isso.
Por outro lado, ele estaria
definitivamente a salvo de ter que orientar pai-versamente o amor do pai para
salvar uma mãe que se defende dele? Quanto a isso eu estou menos certo. A
metáfora do imã não recobre tudo. Podemos entrever ai uma identificação
feminina que lhe causa horror.
O pai de Charles também o deixa
entrever algo quando, no curso de nossa entrevista, ele deixa escapar que ele
teme que seu filho se torne homossexual. Então, forçado pela lógica que se
impõe no tratamento e pela exigência desta escrita do quarteto que eu desdobro,
devo recuar em escrever isso?
homem à amante
/ mãe à filho
$ a $ a
Isso daria conta do fato de que o
amante assegura a pai-versão evitando à mãe o ter que prestar-se como mulher.
Pai-versão estranha, certamente, pois ela faria do amante o objeto a que orienta o amor do pai; amor que
lhe é insuportável ao ponto que ele se barra diante desta escolha de objeto
numa crise de epilepsia.
O amante não fica por menos, na
parte esquerda, o quarto elemento que assegura, para Charles, a metáfora
paterna sobre a qual ele se apoia com seu significante “imã” (aimant). Assim
ele fica mais ou menos assegurado de atrair as mulheres com sua pistola-imã.
Este imã permite recobrir o lugar faltante de onde ele deveria orientar o amor
do pai, preservando a mãe “toda”.
Notemos que precisamente neste
momento Charles tem cada vez mais dificuldade em encontrar a moedinha com a
qual ele deve pagar sua sessão; ela desaparece regularmente no forro da sua
bolsa e ele leva um tempão tentando tirá-la; ele me diz então: “Eu precisaria
mesmo de um imã para poder recuperá-la”.
Concluímos, enfim, que os pontilhados
que Charles situou sua mãe e ele representam sem dúvida a castração feminina,
não recoberta pela metáfora do imã. Todo o problema futuro é saber o que
Charles fará disso. Ele aceitará que “não tudo” possa ser dito da relação
sexual que não existe, ele poderá entrever ai “este pequeno nada que todo mundo
quer ver” e que o constitui como sujeito?
2. A HISTÓRIA DE ZORRO MULETA
Zorro não é mais uma criança, apesar
de que, olhando de perto, o que o leva à análise é a impossibilidade de deixar
seus pais, a impossibilidade de entrar na vida ativa e a ausência quase
completa de vida sexual.
Zorro está ligado indissoluvelmente
ao romance familiar que presidiu sua vinda ao mundo: “Salvar meu pai da
influência de uma mulher boa (rival), foi a condição do meu nascimento, segundo
minha mãe”.
“Zorro chegou”, é uma fórmula que
ele gosta.
Eis,
numa curta sequencia clínica, uma sequencia de associações:
-
Zorro em espanhol é raposa.
-
Um desenho animado onde se vê uma raposa débil dar uma carreira nuns carneiros
gritando: “As belas galinhas”.
-
A tourada em que o touro imbecil investe contra a muleta[4]
em vez de visar o homem.
-
Uma tarde na tourada com seus pais: a mãe reprova o pai por se interessar pelas
mulheres bonitas.
Esta sequencia deixa entender que
“Zorro chegou” no momento oportuno precisamente para salvar o pai da influência
de uma mulher, mas ao mesmo tempo, este Zorro é a muleta que protege a mãe
velando sua castração: o que evita então a mãe ter que orientar pai-versamente
o amor do pai. Ela se serviria do filho para isso. E quanto a ele, isso se
ajeita para que ele se faça o tolo desta história. Então ele dá uma carreira
nos carneiros tomando-os por galinhas.
Poderíamos escrever isso na
estrutura do quarteto da seguinte maneira:
homem à Zorro muleta /
mãe à filho
$ <> a $
a
Neste quarteto é o significante
filho que é desdobrado, já que o romance familiar lhe designa o lugar de Zorro
Muleta para fazer semblante de orientar o amor do pai. Ele está presente nos
dois lugares. Que a divisão incida sobre este significante do filho, isso vai
bem no sentido da castração imaginária que ele exibe em sua inibição.
Fazer semblante de orientar o amor
do pai para salvar a mãe, como o pai aliás, é ao que ele se dedica na vida, já
que o que lhe interessa não são as mulheres, nem os homossexuais, mas os homens
casados.
3. JYHEL
É o caso de um rapaz psicótico que
me foi contado por Marie-Jean Sauret.
Para ele, o pai “se descarta publicamente
da versão para o pai, da qual sua mulher era a causa pedindo aos filhos para
suportar, a partir de então, o desejo da mãe”. É o que ilustra uma cena
memorável para este menino que se lembra de seu pai se ausentando
sub-repticiamente no meio de uma refeição para nunca mais voltar. Ele telefona
então para sua mulher: “Beije teus filhos”.
Após uma tentativa (que fracassa) de
inscrever um nome do pai, ele elabora uma metáfora delirante e se põe
compulsivamente a querer percorrer todas as linhas de ônibus da cidade porque
assim ele espera conhecer toda a rede das ruas. Seu drama é que restam sempre
algumas zonas de sombra nas ruas onde os ônibus não passam.
Uma primeira interrupção do
tratamento vai leva-lo a elaborar uma sociedade fictícia de ônibus que passaria
estritamente por todas as ruas da cidade. Ele retoma seu tratamento, não se
ouve mais falar da sociedade de ônibus.
Ele o interrompe novamente e retorna
três anos mais tarde. Ele vive então com uma companheira e ele imaginou um
sistema para lhe fazer “tagazou” (amor). É uma “combinação imbatível” da qual
ele é o depositário, mas da qual ele não pode falar a ninguém, de onde a
necessidade de vir se abrir com seu analista. Esta combinação é primeiramente
um ciframento secreto que está em relação com uma rede geográfica, já que ela
também existe tanto em Nantes como em Estrasburgo (dois pontos diametralmente
opostos do hexágono). Neste ciframento intervêem as iniciais, as datas de
nascimento e os números da conta bancária de Jyhel e de sua companheira. Esta
combinação não é apenas uma rede simbólica, é também uma imagem, ou seja, uma
combinação no sentido de uma vestimenta que ele deve vestir, enquanto que sua
companheira deve tirá-la para poder fazer amor. Esta combinação é dotada de um
buraco que bordeja assim seu pênis.
Enfim, vemos neste caso, que a
metáfora paterna não funcionou. No quarteto que nos ocupa, o lado esquerdo
falta. Não há pai-versão: “Que ela beije seus filhos!”
Então subsiste o lado direito do
quarteto:
mãe à filho
$ <>
a
No qual o filho dá diretamente à mãe
o que a faria “toda”. É o que eu chamei de mãe-versão. Não há ai romance
familiar, mas em seu lugar, temos um romance inédito que Jyhel deve escrever
sem nenhuma referência, de onde a necessidade de um escriba: o analista. Este
texto inédito que ele deve escrever traça uma rede significante para fazer pai
e mãe se unirem num transporte.
E, para poder ele próprio consumir
alguma coisa de um transporte com sua parceira, ele precisa primeiro fazer os
significantes copularem num ciframento complicado que faz uma combinação entre
ele e ela. Então esta combinação vai talvez lhe servir de prótese imaginária.
Se a identificação imaginária ao desejo da mãe não podia lhe assegurar o
encontro sexual com uma parceira sem soçobrar a mãe-versão, munido por outro
lado desta combinação que reduplica esta identificação imaginária, por pouco, o
encontro poderia ser sustentável.
Ou seja, temos aqui uma tentativa de
escrever um romance novo: a metáfora delirante, no lugar do romance familiar
para se acomodar com a relação sexual “que não existe”.
Para concluir:
Philippe Lacadée, em nosso primeiro
encontro, nos havia proposto uma leitura esclarecida do sintoma da criança como
verdade do casal parental. E ele tinha dito muito justamente alguma coisa
assim: o que se inscreve do lado pai-mãe é o que não se inscreve do lado
homem-mulher. Foi o que me inspirou esta pergunta que eu lhe fazia: o sintoma
como formação de compromisso entre o romance familiar e a verdade da não
relação sexual.
Penso que eu tentei hoje responder à
minha pergunta.
Então, é a minha vez de lançar a
sequencia para uma próxima vez. Simplesmente, eu proponho a leitura de uma
pequena passagem do Seminário R.S.I.: “O que não impede que se no inconsciente,
não houvesse um tanto de significantes copulando entre si, se indexando em
pulular dois a dois, não haveria nenhuma chance de que a ideia de um sujeito,
de uma paterna do falo cujo significante é o Um que o divide essencialmente,
surja. Graças a que ele percebe que há saber no inconsciente, ou seja, há
copulação inconsciente, de onde esta idéia louca – deste saber fazer semblante
por sua vez. Com relação a que parceiro? – senão aquele que se produz também de
uma copulação cega – é o caso de dizê-lo.”.
Tradução: Cristina Drummond.
[1] LACAN, J. Seminário Livro XXII, RSI. Lição de 21 de
janeiro de 1975, in Ornicar?, no. 3, 1975, p. 107-108.
[2] Distinguir bem o quarteto
significante: homem, mulher, mãe, criança; e as duas estruturas quaternárias
que não são nada além de S1à S2
$ a
[3] Lacan, J. Duas notas sobre a criança.
In Ornicar?, no. 37, 1986, p. 13-14
[4] N.T. Muleta é o pau em que o
toureiro sustenta a capa para chamar o touro.
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