"A barra do amor é que ele é meio êrmo. A barra da morte é que ela não tem meio-termo".
Eliz Regina
ALGUMAS CONSIDERAÇOES
SOBRE O SEXO, DROGA E ROCK AN’ROLL
Maria Eliza Arreguy Maia
Trago como epigrafe a pequena história de Sid
Vicious, baixista dos Sex Pistols, um conjunto inglês que, de meados da década
de setenta até o fim de seus curtos dias, detonou o rock punk, dando projeção
ao movimento pós-hippie, anti-hippie pode-se dizer, movimento difuso de uma
juventude que se supõe cansada, farta, traída. Nada de grandes utopias, o bem
estar proporcionado pela social democracia capitalista, como não podia deixar
de ser, deixa restos. O movimento punk teve grande ressonância entre os filhos
da periferia de uma “Londres apocalíptica, entre a monarquia e a barbárie”.[1]
O sonho acabou e bem no fim do século! Naqueles
dias vivia-se um clima de ameaça fria das duas potencias mundiais e da
possibilidade da 3ª guerra. “Meus heróis morreram de overdose e meus inimigos
estão no poder...”, grita e clama o poeta que, anos mais tarde, na periferia do
1º mundo, ofertará seu corpo como ideologia quando não há uma pra viver. [2]
Sid meio que perambula pelos lugares de sepre
aonde vai a moçada da pesada. Fuma-se, bebe-se, pica-se. Nos intervalos um som
racante, gritado, feroz e francamente descomprometido com qualquer virtuosismo,
ao contrário do rock de até então. Eles são bem agressivos no visual, nos
modos, na vida. Recuperam algo de transgressivo queo rock ia perdendo. Tudo tem
um ar de desespero vago, é de um vazio que se trata. Nada de paz, de amor muito
menos. No filme – Sid e Nancy[3]
- Nancy, a americana pirada que será a namorada de Sid e com ele protagonizará
uma tragédia em overdose, numa sequencia ela entra num apartamento onde dorme a
turma toda e quem chegar. Johnny Rotten, líder da banda diz a ela que já vinha
ela, maldita americana, com a mania dos americanos, esses hippies nojentos, de
querer trepar. Ali, diz ele, ninguém faz sexo não. Mas Nancy é uma mulher, ela
insiste né. Sid se amarra nela, ela está metida ai com uns caras da droga –
eles andam sempre em carrões. Mas da coisa Sid também já gostava. O namoro deles
vai progredindo junto com a meteórica passagem dos Sex Pistols no cenário do
showbis. Na mesma proporção cresce a importância do pico na historia. Dança o
conjunto, dança a própria música, eles nem trepam mais, se queixa Nancy, eles
só entram numas.
A barra pesa.[4]
Sid e Nancy só vivem para a próxima picada e o maldito “avião” que não vem. A
droga sempre atrasa – e nada é por acaso no mundo d’”A indústria”, adverte
Burroughs.[5]
Chega um momento em que Nancy, sempre a mulher, diz que não aguenta mais, pede
a Sid que a mate. Ela já vinha insistindo nisso. Eles estão muito loucos. No
desespero ele pega uma faca e acena para ela em provocação. Nancy se abraça à
faca. Tempos depois de deixar a prisão Sid morre de overdose.
O desejo de morrer que vem da boca da mulher já
era uma proteção contra o gozo que os consumia. O desejo, mesmo o de morrer já
era uma barreira contra esse para além do prazer em repetição infernal.
O discurso analítico pode esclarecer os outros
discursos em seus efeitos. Esclarecendo-os, isso se move. Basta um quarto de
volta e, como os elementos noutro lugar, tem –se um discurso. Um discurso é uma
forma de fazer laço social. Existe o sujeito do significante, que preexiste ao
individuo. Existe o eu que se forma em relação com uma imagem – “... essa
relação já forma a massa”. [6]
No grupo o indivíduo procura uma solução para sua divisão. Porque o sujeito é
dividido há perda de gozo. O indivíduo está submetido ao discurso do mestre – o
discurso do mestre é o discurso fundador, primordial, diz Lacan. Aquilo que
coletiviza está no lugar de um ideal, conforme escreveu Freud na Psicologia das Massas, o que Lacan
escreveu S1 na posição de agente. O mestre é também o interditor do gozo. A
vida em sociedade, isto é, em grupo, circunscreve um gozo impossível, aquele do
ser, proibido àquele que fala. No grupo haverá sempre a sombra do mal-estar. O
mestre, amado ou odiado, sempre comanda. Ao contrário, ter a causa no lugar de
agente não permite um domínio sobre o mundo, mas permite àquele que fala
conceber e engendrar seu mundo. É por não ser um mestre nem estar ao serviço de
um, mas estar em posição da causa da descoberta de um saber sobre a verdade.
Entre o primeiro e o segundo algo se perde. É ao preço de uma perda que se faz
sujeito.
Todo lugar de poder é um lugar de discurso e,
portanto, a matematização dos quatro discursos de Lacan pode servir para sua
leitura.
A droga tem um lugar na cultura, pode-se
extraí-la deste lugar e pensa-la na dimensão de objeto para um sujeito
determinado. Por este viés vai-se deparar, ao fim da linha, com o masoquismo
primário, nome freudiano do gozo, da repetição mortífera que opera no coração
do ser e que é responsável pelo mal-estar na cultura. O outro caminho é
pensa-la como fato de discurso, como mercadoria e, portanto, geradora de
riqueza, logo de poder.
No mundo de hoje, onde se assiste entre
horrorizado e anestesiado (!) à guerra do narcotráfico na Colômbia, pode-se
dizer que existe uma política da droga? Que entender por política neste caso?
Seria a gestão do necessário?
“A droga cria uma fórmula básica do vírus do
‘mal’: a Álgebra da Necessidade. A face do ‘mal’ é sempre a face da total
necessidade. Um viciado em droga é um homem em total necessidade da droga.
Acima de certa frequência a necessidade não conhece nenhum limite ou controle.
Nas palavras da total necessidade: “Tá a fim?” [7]
Curiosamente, as palavras da total necessidade
articulam uma demanda. A voz do traficante, do colega de turma, enfim, do outro
faz retumbar uma outra voz. Na associação da demanda do Outro com a necessidade
metabólica reina um imperativo categórico: “Goza!”.[8]
Nos damos conta de que os dois níveis, o da
droga como objeto e o da política da droga não são assim tão separados.
O gozo vem, para cada sujeito particular, do
mandato do supereu, o que articula gozo e lei paterna.
“No fundo o sujeito está diante de uma escolha
ou a pulsão de morte ou a sexualidade; porém trata-se de uma sexualidade antes destinada ao desejo que ao gozo, o que
finalmente quer dizer: ou a pulsão de morte ou o desejo”. [9]
Neste sentido, a pulsão de morte é o que opõe à castração. É um gozo que na
repetição se opõe à vida, age contra ela.
Há um encontro da pulsão de morte, desencadeada
no sujeito até as suas últimas consequências e de uma política da droga,
desencadeada na cultura de forma escancarada. Não é por acaso que Burroughs, no
livro Almoço nu chama a droga e tudo que a efetiva como mercadoria, de “A
indústria”.
William S. Burroughs foi um dos pioneiros da
contra-cultura. Errante, vagabundo de elite, vagou pelo mundo conhecendo seus
porões e maravilhas. Homossexual, escritor, conviveu com muitas das cabeças
pensantes do movimento beat. Apaixonou-se pelas drogas. Era médico, pelo que
tinha um saber científico sobre o vício. “Acorda da doença”da droga[10]
e recolhe as notas que tinha escrito durante a doença. Este saber já era outro.
Ele faz um depoimento-testemunho que tem como base este outro saber do qual ele
se faz senhor. Em 1959 ele tem a convicção de que a droga é o mais grave
problema de saúde do mundo.
“A droga é a fórmula do monopólio e da
possessão. ... Junk é o produto ideal... a mercadoria final. O comerciante não
vende seu produto ao consumidor, vende o consumidor ao seu produto. Ele não
aperfeiçoa nem simplifica sua mercadoria. Ele degrada e simplifica o cliente”[11]
O escritor faz pontaria e acerta na mosca:
havendo um drogado este será o fator principal na equação da droga. Mas, se
esta dependência se realiza em um sujeito particular, tem, no entanto, sua
origem e seu objetivo muito além de cada um. Não se trata mais, somente, da
relação que um sujeito estabelece com um objeto suposto fazer gozar. Sendo uma
mercadoria, sujeita portanto às leis da troca, torna-se fato de discurso na
cultura. A lógica obedece, a qual discurso responde o grupo difuso chamado dos
“viciados” ou dos “toxicômanos”?
Ao falar para os italianos em 1972 sobre o
discurso analítico, Lacan, escreve no quadro um quinto discurso, o discurso do
capitalista.[12]
“Não há nenhum discurso possível que não seja semblante”- nos lembra ele. O
semblante é do sexual, ou melhor, daquilo que máscara a falta que o sexual
comporta. Todos os discursos, portanto, fazem o semblante do gozo. É pois no
interior do laço social que o discurso promove que acontece o que faz crer que
a relação sexual é possível. Ora, um discurso faz isso bem demais, diz Lacan.
O discurso do Capitalista é uma pequena
modificação do discurso do mestre:
S1 à S2 $ à S2
$
a S1 a
Discurso Mestre Discurso do Capitalista
“Enfim, depois de tudo é aquilo que se fez de
mais astucioso como discurso. Isto não é menos destinado ao estouro. É
insustentável num trem que poderei lhes explicar... porque o discurso
capitalista é ai uma pequena inversão simplesmente entre o S1 e o $ ... isto
basta para que isto ande como rodas, isto não pode andar melhor mas justamente ça marche trop vite, ça se
consome, ça se consome si bien que ça se consume”. [13]
O jogo de palavras não encontra tradução
literal em português. No francês encontramos duas palavras ‘consommer’ – que é
consumir, dissiplar, gastar, despender, completar, absorver, cometer, levar ao
cabo, arruinar, esbanjar, completar-se. – e também o ‘consumer’ – consumir,
usar, gastar. No Aurélio encontramos só o ‘consumir’ que resumo estes dois
sentidos, o de usar, gastar e o de dissipar, usar até o abuso.
A droga como mercadoria perfeita: aquela que
resumo às raias do absoluto aquilo que o discurso da consumição propõe. Não
está sozinha, certamente, a ecologia vem revelando os efeitos de se vender o
planeta como se ele fosse descartável.
Há a coisa em seu valor de uso – na medida em
que serve às necessidades humanas. Há o valor – que é relacional, so se realiza
na troca, e que subsume o valor do trabalho; e há a mais-valia – que é o valor
excedente que o capitalista recolhe pagando ao trabalhador, por seu tempo de
trabalho, menos do que o valor que ele recebe pelo produto. Isso conforme
ensina Marx.
“A mais valia é isso... é o mais de gozar. Não
há senão isso que faz funcionar o sistema”, acrescenta Lacan.[14]
Marx adverte que quando uma coisa toma a forma
de mercadoria a relação de valor entre os produtos do trabalho que irá
caracterizar essa forma, nada tem a ver com a natureza física das mercadorias,
nem com as relações materiais dela decorrentes “Uma relação social definida,
estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação
entre coisas. Para encontrar um símile, temos de recorrer à região nebulosa da
crença. Ai os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria,
figuras autônomas que mantém relações entre si e com os seres humanos. É o que
ocorre com os produtos da mão humana, no mundo das mercadorias. Chamo a isso de
fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são
gerados como mercadorias”. [15]
Seria a droga, hoje, um fetiche – aquilo que
está no lugar do falo da mãe, aquilo que reconhece e desmente ao mesmo tempo a
completude do Outro?
Nos “tempos românticos da droga”[16]
ela aparecia quase abertamente na cultura, ritualizada. Porém, pode-se dizer
que submetida ao significante na fórmula, por exemplo, de “paz e amor”. Estes
significantes foram colocados no lugar do Ideal aglutinando jovens no mundo
inteiro, fazendo grupo. A difusão deste ideal se fez por muitos canais, mas
pode-se dizer que teve n Rock sua melhor expressão, por vias do que o movimento
se expandiu.
“Todas as drogas alucinógenas são consideradas
sagradas pelos que as usam. Há cultos do peiote e cultos da bannisteria, cultos
do haxixe e do cogumelo. Mas ninguém jamais sugeriu que a junk fosse sagrada.
Não existe nenhum culto ao ópio. O ópio é profano e quantificável como o
dinheiro. Ouvi dizer que já houve um tipo de droga benéfica na Índia, que não
viciava. Chama-se soma. Se o soma existiu alguma vez, o traficante estava lá
para engarrafa-lo, monopolizá-lo e vend&ê-lo...”[17]
Há aqui algo que atravessa o raciocínio do
autor. Por um lado ele compara certo tipo de droga com o próprio dinheiro. Por
outro ele mesmo sabe que não tem haver bem com a coisa, ela pode até ser benéfica
como o “soma”, que o que vai determinar seu valor na cultura são as relações às
quais ela está submetida. Como mercadoria são aqueles que detêm os meios de
produção, os grandes atacadistas da droga, é que vão determinar sua regulação
no mercado, uma política que será sempre a da escassez.
Sabe-se que o perverso exige a interdição para
seu gozo. “... a causa do desejo não funciona como tal senão porque o gozo foi
proibido. É portanto suficiente, para obter um gozo, identificar tudo que pode
funcionar como proibição, e transgredir essas interdições. Deste modo, o
perverso inventa o legislador no próprio lugar onde era menos esperado.”...
“Assim, o perverso é aquele que ativa a legislação social com a maior
veemência”. Desta maneira, apela para a prisão, que é o coração palpitante da
Lei, o lugar onde a proibição permite gozar com aquilo mesmo que é impossível.”
... e a prisão, que coroa essas atividades é gozo continuado, não apenas para o
aprisionado, mas para o conjunto do ‘corpo social’”.[18]
Pode-se pensar então que a política da droga,
além de se pautar pela escassez, se beneficia da sua ilegalidade, até mesmo a
exige. (E tome caçada de traficante nas vielas dos morros, via Embratel,
oportunidade em que são exibidos ao expectadr mais um “chefão” do tráfico).
Por fim, nos colocamos em posição de perguntar
se a política da droga seria propriamente perversa, no sentido lacaniano. De um
lado, o do monopólio, do grande traficante, temos a droga em sua equação com o
dinheiro, naquilo que este implica de real – uma vez que há equivalência com o
mais-de-gozo. Esta equivalência, porém, se realiza numa ordem simbólica, a
ordem do valor, onde o dinheiro permite extrair a mais-valia justamente por
ocultar uma diferença entre os produtos trocados. Se há uma fetichizaçao de
toda mercadoria, na mercadoria droga o fetiche é erigido privilegiadamente por
sua relação com a proibição-transgressão da lei e, principalmente, - se gastar
por ser igual a gozar -, gastar com a droga é proporcionar-se o encontro
incestuoso impossível. O produtor monopolista com sua política estaria no lugar
do instrumento do gozo do Outro, tendo como sua vítima aqueles que não despertaram
com o fim do sonho e seguem sonâmbulos, sem religião, utopias políticas ou
palavras de ordem? (Deus esta morto e esta cultura não admite o lugar vazio).
Do outro lado, do sujeito pego nas malhas do
vicio, já não mais sujeito, faz-se objeto do gozo do Outro. É neste lado que o
erótico desfalece, desencadeando um masoquismo primário onde a próxima picada
marca o corpo-carne e prenuncia a passagem ao ato daquele que sem poder extrair
o que seria a causa de seu desejo, pula fora sem volta.
Nota: Estas “Considerações” fazem parte de uma investigação
ainda em curso. Resta aprofundar as relações do desejo com o gozo – naquilo que o desejo guarda de
trágico – , e repensar a droga na cultura: em princípio questionada como
fetiche na cultura, agora possivelmente, numa inscrição ainda mais radical.
[1] SANTOS, Hugo, Sid Vicius. São
Paulo, Brasiliense.
[2] CAZUZA, versos da música Ideologia.
[3] Filme “Sid and Nancy”, em
portugues “Sid e Nancy, o amor mata”. Direção de Alex Cox, 1986. MSA.
[4] Chama-se a atenção aqui para
o matema do discurso do Capitalista, que Lacan escreveu, conforme encontra-se no próprio texto. Considere as duas setas, apontando para baixo, ao lado deste matema. Neste caso, essas setas
ao contrário dos outros discursos não indicam um movimento de circulação. Antes
apontam na mesma direção.
[6] POMMIER, G. Freud apocalíptico?.
Porto Alegre, Artes Médicas, p. 21.
[7] BURROUGHS, W. S. Almoço nu. São
Paulo, Brasiliense, p. 7
[8] SILVESTRE, M. O fim de
análise. In Falo, no 3, p. 38.
[9] SANTOS, H. Sid Vicious. São
Paulo, Brasiliense., p. 5
[10] Idem
[11]
Idem
[12]
LACAN, j. Lacan in Itália. Inédito, maio de 1972.
[14]
Idem
[15] Marx, K. O capital. Vol. I. Rio de Janeiro, Civilização.
[16] Leia-se a próposito: DiAS L., lodi,
M. e VILELA, V. Elaborações psicanalíticas sobre a toxicomania. In Papéis do
$impósio. Belo Horizonte, 1989.
[17] SANTOS, h. Sid Vicious. São Paulo,
Brasiliense.
[18] POMMIER, G. Freud apolítico?
Porto Alegre, Artes Médicas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário