terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O SEXO, DROGA E ROCK AN'ROLL

"A barra do amor é que ele é meio êrmo. A barra da morte é que ela não tem meio-termo".
Eliz Regina

ALGUMAS CONSIDERAÇOES SOBRE O SEXO, DROGA E ROCK AN’ROLL

Maria Eliza Arreguy Maia

Trago como epigrafe a pequena história de Sid Vicious, baixista dos Sex Pistols, um conjunto inglês que, de meados da década de setenta até o fim de seus curtos dias, detonou o rock punk, dando projeção ao movimento pós-hippie, anti-hippie pode-se dizer, movimento difuso de uma juventude que se supõe cansada, farta, traída. Nada de grandes utopias, o bem estar proporcionado pela social democracia capitalista, como não podia deixar de ser, deixa restos. O movimento punk teve grande ressonância entre os filhos da periferia de uma “Londres apocalíptica, entre a monarquia e a barbárie”.[1]

O sonho acabou e bem no fim do século! Naqueles dias vivia-se um clima de ameaça fria das duas potencias mundiais e da possibilidade da 3ª guerra. “Meus heróis morreram de overdose e meus inimigos estão no poder...”, grita e clama o poeta que, anos mais tarde, na periferia do 1º mundo, ofertará seu corpo como ideologia quando não há uma pra viver. [2]


Sid meio que perambula pelos lugares de sepre aonde vai a moçada da pesada. Fuma-se, bebe-se, pica-se. Nos intervalos um som racante, gritado, feroz e francamente descomprometido com qualquer virtuosismo, ao contrário do rock de até então. Eles são bem agressivos no visual, nos modos, na vida. Recuperam algo de transgressivo queo rock ia perdendo. Tudo tem um ar de desespero vago, é de um vazio que se trata. Nada de paz, de amor muito menos. No filme – Sid e Nancy[3] - Nancy, a americana pirada que será a namorada de Sid e com ele protagonizará uma tragédia em overdose, numa sequencia ela entra num apartamento onde dorme a turma toda e quem chegar. Johnny Rotten, líder da banda diz a ela que já vinha ela, maldita americana, com a mania dos americanos, esses hippies nojentos, de querer trepar. Ali, diz ele, ninguém faz sexo não. Mas Nancy é uma mulher, ela insiste né. Sid se amarra nela, ela está metida ai com uns caras da droga – eles andam sempre em carrões. Mas da coisa Sid também já gostava. O namoro deles vai progredindo junto com a meteórica passagem dos Sex Pistols no cenário do showbis. Na mesma proporção cresce a importância do pico na historia. Dança o conjunto, dança a própria música, eles nem trepam mais, se queixa Nancy, eles só entram numas.

A barra pesa.[4] Sid e Nancy só vivem para a próxima picada e o maldito “avião” que não vem. A droga sempre atrasa – e nada é por acaso no mundo d’”A indústria”, adverte Burroughs.[5] Chega um momento em que Nancy, sempre a mulher, diz que não aguenta mais, pede a Sid que a mate. Ela já vinha insistindo nisso. Eles estão muito loucos. No desespero ele pega uma faca e acena para ela em provocação. Nancy se abraça à faca. Tempos depois de deixar a prisão Sid morre de overdose.
O desejo de morrer que vem da boca da mulher já era uma proteção contra o gozo que os consumia. O desejo, mesmo o de morrer já era uma barreira contra esse para além do prazer em repetição infernal.

O discurso analítico pode esclarecer os outros discursos em seus efeitos. Esclarecendo-os, isso se move. Basta um quarto de volta e, como os elementos noutro lugar, tem –se um discurso. Um discurso é uma forma de fazer laço social. Existe o sujeito do significante, que preexiste ao individuo. Existe o eu que se forma em relação com uma imagem – “... essa relação já forma a massa”. [6] No grupo o indivíduo procura uma solução para sua divisão. Porque o sujeito é dividido há perda de gozo. O indivíduo está submetido ao discurso do mestre – o discurso do mestre é o discurso fundador, primordial, diz Lacan. Aquilo que coletiviza está no lugar de um ideal, conforme escreveu Freud na Psicologia das Massas, o que Lacan escreveu S1 na posição de agente. O mestre é também o interditor do gozo. A vida em sociedade, isto é, em grupo, circunscreve um gozo impossível, aquele do ser, proibido àquele que fala. No grupo haverá sempre a sombra do mal-estar. O mestre, amado ou odiado, sempre comanda. Ao contrário, ter a causa no lugar de agente não permite um domínio sobre o mundo, mas permite àquele que fala conceber e engendrar seu mundo. É por não ser um mestre nem estar ao serviço de um, mas estar em posição da causa da descoberta de um saber sobre a verdade. Entre o primeiro e o segundo algo se perde. É ao preço de uma perda que se faz sujeito.
Todo lugar de poder é um lugar de discurso e, portanto, a matematização dos quatro discursos de Lacan pode servir para sua leitura.

A droga tem um lugar na cultura, pode-se extraí-la deste lugar e pensa-la na dimensão de objeto para um sujeito determinado. Por este viés vai-se deparar, ao fim da linha, com o masoquismo primário, nome freudiano do gozo, da repetição mortífera que opera no coração do ser e que é responsável pelo mal-estar na cultura. O outro caminho é pensa-la como fato de discurso, como mercadoria e, portanto, geradora de riqueza, logo de poder.

No mundo de hoje, onde se assiste entre horrorizado e anestesiado (!) à guerra do narcotráfico na Colômbia, pode-se dizer que existe uma política da droga? Que entender por política neste caso? Seria a gestão do necessário?

“A droga cria uma fórmula básica do vírus do ‘mal’: a Álgebra da Necessidade. A face do ‘mal’ é sempre a face da total necessidade. Um viciado em droga é um homem em total necessidade da droga. Acima de certa frequência a necessidade não conhece nenhum limite ou controle. Nas palavras da total necessidade: “Tá a fim?” [7]

Curiosamente, as palavras da total necessidade articulam uma demanda. A voz do traficante, do colega de turma, enfim, do outro faz retumbar uma outra voz. Na associação da demanda do Outro com a necessidade metabólica reina um imperativo categórico: “Goza!”.[8]

Nos damos conta de que os dois níveis, o da droga como objeto e o da política da droga não são assim tão separados.

O gozo vem, para cada sujeito particular, do mandato do supereu, o que articula gozo e lei paterna.
“No fundo o sujeito está diante de uma escolha ou a pulsão de morte ou a sexualidade; porém trata-se de uma sexualidade antes destinada ao desejo que ao gozo, o que finalmente quer dizer: ou a pulsão de morte ou o desejo”. [9] Neste sentido, a pulsão de morte é o que opõe à castração. É um gozo que na repetição se opõe à vida, age contra ela.

Há um encontro da pulsão de morte, desencadeada no sujeito até as suas últimas consequências e de uma política da droga, desencadeada na cultura de forma escancarada. Não é por acaso que Burroughs, no livro Almoço nu chama a droga e tudo que a efetiva como mercadoria, de “A indústria”.

William S. Burroughs foi um dos pioneiros da contra-cultura. Errante, vagabundo de elite, vagou pelo mundo conhecendo seus porões e maravilhas. Homossexual, escritor, conviveu com muitas das cabeças pensantes do movimento beat. Apaixonou-se pelas drogas. Era médico, pelo que tinha um saber científico sobre o vício. “Acorda da doença”da droga[10] e recolhe as notas que tinha escrito durante a doença. Este saber já era outro. Ele faz um depoimento-testemunho que tem como base este outro saber do qual ele se faz senhor. Em 1959 ele tem a convicção de que a droga é o mais grave problema de saúde do mundo.

“A droga é a fórmula do monopólio e da possessão. ... Junk é o produto ideal... a mercadoria final. O comerciante não vende seu produto ao consumidor, vende o consumidor ao seu produto. Ele não aperfeiçoa nem simplifica sua mercadoria. Ele degrada e simplifica o cliente”[11]

O escritor faz pontaria e acerta na mosca: havendo um drogado este será o fator principal na equação da droga. Mas, se esta dependência se realiza em um sujeito particular, tem, no entanto, sua origem e seu objetivo muito além de cada um. Não se trata mais, somente, da relação que um sujeito estabelece com um objeto suposto fazer gozar. Sendo uma mercadoria, sujeita portanto às leis da troca, torna-se fato de discurso na cultura. A lógica obedece, a qual discurso responde o grupo difuso chamado dos “viciados” ou dos “toxicômanos”?

Ao falar para os italianos em 1972 sobre o discurso analítico, Lacan, escreve no quadro um quinto discurso, o discurso do capitalista.[12] “Não há nenhum discurso possível que não seja semblante”- nos lembra ele. O semblante é do sexual, ou melhor, daquilo que máscara a falta que o sexual comporta. Todos os discursos, portanto, fazem o semblante do gozo. É pois no interior do laço social que o discurso promove que acontece o que faz crer que a relação sexual é possível. Ora, um discurso faz isso bem demais, diz Lacan.

O discurso do Capitalista é uma pequena modificação do discurso do mestre:

   S1 à S2                        $ à S2           
   $         a                       S1       a
Discurso Mestre          Discurso do Capitalista

“Enfim, depois de tudo é aquilo que se fez de mais astucioso como discurso. Isto não é menos destinado ao estouro. É insustentável num trem que poderei lhes explicar... porque o discurso capitalista é ai uma pequena inversão simplesmente entre o S1 e o $ ... isto basta para que isto ande como rodas, isto não pode andar melhor mas justamente ça marche trop vite, ça se consome, ça se consome si bien que ça se consume”. [13]

O jogo de palavras não encontra tradução literal em português. No francês encontramos duas palavras ‘consommer’ – que é consumir, dissiplar, gastar, despender, completar, absorver, cometer, levar ao cabo, arruinar, esbanjar, completar-se. – e também o ‘consumer’ – consumir, usar, gastar. No Aurélio encontramos só o ‘consumir’ que resumo estes dois sentidos, o de usar, gastar e o de dissipar, usar até o abuso.

A droga como mercadoria perfeita: aquela que resumo às raias do absoluto aquilo que o discurso da consumição propõe. Não está sozinha, certamente, a ecologia vem revelando os efeitos de se vender o planeta como se ele fosse descartável.

Há a coisa em seu valor de uso – na medida em que serve às necessidades humanas. Há o valor – que é relacional, so se realiza na troca, e que subsume o valor do trabalho; e há a mais-valia – que é o valor excedente que o capitalista recolhe pagando ao trabalhador, por seu tempo de trabalho, menos do que o valor que ele recebe pelo produto. Isso conforme ensina Marx.

“A mais valia é isso... é o mais de gozar. Não há senão isso que faz funcionar o sistema”, acrescenta Lacan.[14]

Marx adverte que quando uma coisa toma a forma de mercadoria a relação de valor entre os produtos do trabalho que irá caracterizar essa forma, nada tem a ver com a natureza física das mercadorias, nem com as relações materiais dela decorrentes “Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Para encontrar um símile, temos de recorrer à região nebulosa da crença. Ai os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas que mantém relações entre si e com os seres humanos. É o que ocorre com os produtos da mão humana, no mundo das mercadorias. Chamo a isso de fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias”. [15]

Seria a droga, hoje, um fetiche – aquilo que está no lugar do falo da mãe, aquilo que reconhece e desmente ao mesmo tempo a completude do Outro?

Nos “tempos românticos da droga”[16] ela aparecia quase abertamente na cultura, ritualizada. Porém, pode-se dizer que submetida ao significante na fórmula, por exemplo, de “paz e amor”. Estes significantes foram colocados no lugar do Ideal aglutinando jovens no mundo inteiro, fazendo grupo. A difusão deste ideal se fez por muitos canais, mas pode-se dizer que teve n Rock sua melhor expressão, por vias do que o movimento se expandiu.

“Todas as drogas alucinógenas são consideradas sagradas pelos que as usam. Há cultos do peiote e cultos da bannisteria, cultos do haxixe e do cogumelo. Mas ninguém jamais sugeriu que a junk fosse sagrada. Não existe nenhum culto ao ópio. O ópio é profano e quantificável como o dinheiro. Ouvi dizer que já houve um tipo de droga benéfica na Índia, que não viciava. Chama-se soma. Se o soma existiu alguma vez, o traficante estava lá para engarrafa-lo, monopolizá-lo e vend&ê-lo...”[17]

Há aqui algo que atravessa o raciocínio do autor. Por um lado ele compara certo tipo de droga com o próprio dinheiro. Por outro ele mesmo sabe que não tem haver bem com a coisa, ela pode até ser benéfica como o “soma”, que o que vai determinar seu valor na cultura são as relações às quais ela está submetida. Como mercadoria são aqueles que detêm os meios de produção, os grandes atacadistas da droga, é que vão determinar sua regulação no mercado, uma política que será sempre a da escassez.

Sabe-se que o perverso exige a interdição para seu gozo. “... a causa do desejo não funciona como tal senão porque o gozo foi proibido. É portanto suficiente, para obter um gozo, identificar tudo que pode funcionar como proibição, e transgredir essas interdições. Deste modo, o perverso inventa o legislador no próprio lugar onde era menos esperado.”... “Assim, o perverso é aquele que ativa a legislação social com a maior veemência”. Desta maneira, apela para a prisão, que é o coração palpitante da Lei, o lugar onde a proibição permite gozar com aquilo mesmo que é impossível.” ... e a prisão, que coroa essas atividades é gozo continuado, não apenas para o aprisionado, mas para o conjunto do ‘corpo social’”.[18]

Pode-se pensar então que a política da droga, além de se pautar pela escassez, se beneficia da sua ilegalidade, até mesmo a exige. (E tome caçada de traficante nas vielas dos morros, via Embratel, oportunidade em que são exibidos ao expectadr mais um “chefão” do tráfico).

Por fim, nos colocamos em posição de perguntar se a política da droga seria propriamente perversa, no sentido lacaniano. De um lado, o do monopólio, do grande traficante, temos a droga em sua equação com o dinheiro, naquilo que este implica de real – uma vez que há equivalência com o mais-de-gozo. Esta equivalência, porém, se realiza numa ordem simbólica, a ordem do valor, onde o dinheiro permite extrair a mais-valia justamente por ocultar uma diferença entre os produtos trocados. Se há uma fetichizaçao de toda mercadoria, na mercadoria droga o fetiche é erigido privilegiadamente por sua relação com a proibição-transgressão da lei e, principalmente, - se gastar por ser igual a gozar -, gastar com a droga é proporcionar-se o encontro incestuoso impossível. O produtor monopolista com sua política estaria no lugar do instrumento do gozo do Outro, tendo como sua vítima aqueles que não despertaram com o fim do sonho e seguem sonâmbulos, sem religião, utopias políticas ou palavras de ordem? (Deus esta morto e esta cultura não admite o lugar vazio).

Do outro lado, do sujeito pego nas malhas do vicio, já não mais sujeito, faz-se objeto do gozo do Outro. É neste lado que o erótico desfalece, desencadeando um masoquismo primário onde a próxima picada marca o corpo-carne e prenuncia a passagem ao ato daquele que sem poder extrair o que seria a causa de seu desejo, pula fora sem volta.







Nota: Estas “Considerações” fazem parte de uma investigação ainda em curso. Resta aprofundar as relações do desejo  com o gozo – naquilo que o desejo guarda de trágico – , e repensar a droga na cultura: em princípio questionada como fetiche na cultura, agora possivelmente, numa inscrição ainda mais radical.





[1] SANTOS, Hugo, Sid Vicius. São Paulo, Brasiliense.
[2] CAZUZA, versos da música Ideologia.
[3] Filme “Sid and Nancy”, em portugues “Sid e Nancy, o amor mata”. Direção de Alex Cox, 1986. MSA.
 [4] Chama-se a atenção aqui para o matema do discurso do Capitalista, que Lacan escreveu, conforme encontra-se no próprio texto. Considere as duas setas, apontando para baixo, ao lado deste matema. Neste caso, essas setas ao contrário dos outros discursos não indicam um movimento de circulação. Antes apontam na mesma direção.
 [5] SANTOS, H. Sid Vicious, São Paulo, Brasiliense, p. 8
[6] POMMIER, G. Freud apocalíptico?. Porto Alegre, Artes Médicas, p. 21.
[7] BURROUGHS, W. S. Almoço nu. São Paulo, Brasiliense, p. 7
[8] SILVESTRE, M. O fim de análise. In Falo, no 3, p. 38.
[9] SANTOS, H. Sid Vicious. São Paulo, Brasiliense., p. 5
[10]  Idem
[11] Idem
[12] LACAN, j. Lacan in Itália. Inédito, maio de 1972.
 [13] LACAN, j. Lacan in Itália. Inédito, maio de 1972.
[14] Idem
[15] Marx, K. O capital. Vol. I.  Rio de Janeiro, Civilização.
[16] Leia-se a próposito: DiAS L., lodi, M. e VILELA, V. Elaborações psicanalíticas sobre a toxicomania. In Papéis do $impósio. Belo Horizonte, 1989.
[17] SANTOS, h. Sid Vicious. São Paulo, Brasiliense.
[18] POMMIER, G. Freud apolítico? Porto Alegre, Artes Médicas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário