Leda Guimarães
Resumo
A psicanálise é uma só, psicanálise do sujeito,
seja com adulto ou criança. O fato da criança vir ao analista trazida pelos
pais e se manter em atendimento apenas com o consentimento destes suscita
questões ao analista:
· Qual
a implicação subjetiva dos pais no sintoma da criança?
Como
verificar se os pais franqueiam efetivamente uma intervenção psicanalítica no
sintoma do filho?
· Que
transferência dos pais sustentaria uma demanda de atendimento ao filho?
Para responde-las, só há uma referência: o
desejo do analista.
Palavras chave: desejo dos pais, desejo do
analista, sintoma da criança.
A psicanálise define-se como uma clínica do
sujeito do inconsciente. Recorrendo-se à definição do sujeito no ensino de
Lacan – aquele que é representado por um significante para outro significante
-, temos uma referencia que elimina uma distinção entre adulto e criança, já
que a estrutura, o significante, a relação ao Outro e o objeto não concernem ao
modo diferente do sujeito, no adulto ou na criança.
Que a criança venha ao analista trazida pelos
pais não muda o fato de que uma psicanálise se dará desde que haja a abertura
do inconsciente através da formalização do sintoma analítico. A transferência
de saber ao analista, incluída no sintoma, permitirá que a criança possa ser
interrogada como sujeito acerca do gozo que o sustenta ai. É propriamente disso
que se trata na psicanálise com criança, como na psicanálise em si, esse
questionamento que poderá fazer com que um sujeito se desembarace do seu
sintoma.
Já que o processo analítico se dá nessas
condições, uma questão que se impõe a todo analista que se dedica à clínica com
crianças – o que interessa na escuta da demanda dos pais para o atendimento
psicanalítico de uma criança, na medida em que a cura se faz unicamente através
do sujeito do inconsciente?
Lacan, em 1969, apresenta razões para que o
analista também dirija sua escuta aos pais. Assim ele nos diz:
O que determina a
biografia infantil, sua mola, não está senão na maneira como se apresentou o
desejo no pai e na mãe, e que, em consequência disso, nos estimula a explorar
não apenas a história, mas o modo de presença sob o qual cada um destes três
termos: saber, gozo e objeto a foi
efetivamente oferecido ao sujeito. (Lacan, 2008, 1968-1969, p. 321)
Lacan é claro ao dizer que, na escuta dos pais,
o que interessa não é o desenrolar dos fatos numa perspectiva do desenvolvimento
infantil, como propõe a técnica psicoterapêutica da anamnese, mas a história do
sujeito, a própria condição de sujeito oferecida para essa criança, na forma em
que se apresentou o desejo no pai e na mãe. Com essa formulação, Lacan precisa
que, no atendimento aos pais, deve-se dirigir a escuta para os significantes
privilegiados da determinação do sujeito no desejo do Outro.
Podemos ainda extrair outras conclusões dessa
citação de Lacan e a partir dai levantar algumas questões.
Se a biografia infantil é determinada pela
maneira como se apresentou o desejo no pai e na mãe, isto significa que na
determinação do sujeito pelo discurso do Outro está incluído algo da ordem da
subjetividade dos pais. Ou melhor, será exatamente na forma particular como se
apresentou o desejo dos pais, naquilo que de mais íntimo constituiu-se como o
lugar deste filho, que se fará a inscrição dos significantes privilegiados da
estrutura do sujeito.
Neste mesmo ano de 1969, numa carta endereçada
a Jenny Aubry Lacan (1986, 1969), nos alerta acerca dessa implicação subjetiva
dos pais na constituição do sujeito, ao comentar que o fracasso das famílias
comunitárias – utopicamente propostas na década de 60 – nos lembra a função da
família conjugal. O que está em jogo nas funções de mãe de do pai é uma transmissão
de uma constituição subjetiva, implicando a relação a um desejo que não é
anônimo, na medida em que os cuidados da mãe portam a marca de um interesse
particularizado, mesmo que seja por via das suas próprias faltas.
Em que interessa à psicanálise com crianças que
os pais estejam diretamente implicados em sua subjetividade na veiculação do
desejo do Outro? Não é assim que ocorre na constituição de qualquer sujeito?
Basta apenas citar o caso clínico do Homem dos Ratos (Freud, 1996 [1909]) para
lembrar como Freud faz uma intervenção fundamental no processo analítico quando
aponta a relação existente entre o sintoma desse sujeito e as condições que
determinam o casamento do seu pai, antes mesmo do seu nascimento.
Ainda que o sujeito seja determinado por um
discurso que até mesmo o antecede, ele pode ser interrogado como um sujeito
numa posição de escolha diante do desejo e do gozo. O que se questiona na
análise não é tanto o que determina o sujeito, senão a sua posição de escolha,
mesmo que forçada, diante daquilo que o determina. É nessa condição de
responsabilizado pelo seu sofrimento que um sujeito pode realizar um processo
analítico.
Há apenas um pequeno detalhe que marca uma
distinção nas condições de escolha de um adulto e de uma criança. Não é uma
distinção nas condições de escolha como sujeito, portanto não diz respeito,
essa distinção, ao processo analítico em si. Ela está inserida nas condições de
escolha da criança que ultrapassam as próprias possibilidades do sujeito, na
medida em que sua condição inquestionável de dependência dos pais esbarra em um
limite que é a própria decisão deles sobre o que devem ofertar a seu filho.
Ciente desse limite, o analista não deve se
contentar em ouvir apenas, ao nível do dito, uma demanda de atendimento ao
filho. É preciso verificar em outro nível que condições efetivas esses pais
oferecem a essa criança. Ao nos dizer que é na maneira como se apresentou o
desejo nos pais que saber, gozo e objeto a
são ofertados ao sujeito, Lacan nos indica que será também no nível da
subjetividade dos pais que teremos de verificar se, para esse sujeito, é
franqueada uma intervenção psicanalítica.
Sem esse franqueamento, poderá ocorrer o que,
às vezes, se observa na clínica: uma interrupção do processo analítico, por
decisão dos pais, quando a decifração do sintoma da criança desemboca num
elemento relativo à subjetividade dos pais, revelando o que estes não podem
suportar.
A verificação desse franqueamento tem assim o
caráter de uma imposição ética, pois seria de todo sensato que o analista,
antes de dar partida à análise de uma criança, procurasse constatar se lhe
foram dadas, por parte dos pais, as condições de sustentação desse trabalho.
O desejo do analista de estabelecer o processo
de cura intervém diretamente na verificação das condições para tal processo. O
analista, a partir desse desejo, está suficientemente autorizado a verificar a
demanda dos pais, mais além do dito, até o ponto onde eles estão implicados
subjetivamente. Só esta verificação poderá assegurar que o analista esteja
diante de uma demanda que possa ser por ele avalizada, uma demanda que
franqueie efetivamente um processo analítico à criança.
O que vem a ser esse franqueamento?
Nossa proposição é de que este corresponde à
possibilidade de que os pais antecipem estar implicados, de alguma forma, no
sintoma da criança. É que eles consintam em questionar a relação com seu
desejo, frente ao analista, naquilo que eles já antecipam dessa implicação.
Podemos acrescentar que este consentimento dos
pais só poderá se dar desde que haja transferência de saber ao analista. Esta
transferência não é aquela relativa à demanda de análise, mas uma transferência
que faz suporte à formulação de demanda de intervenção num sintoma que não lhes
é próprio, mas que, através desse sintoma, a relação com seu desejo também está
em questão.
A investigação do analista quanto a
subjetividade dos pais só interessa ir até a esse ponto, verificar a
transferência que franquia a intervenção psicanalítica no sintoma do filho,
para então avalizar esta demanda de atendimento a uma criança.
Referências
Lacan, J. (2008, 1968-1969). O Seminário, livro
16: de um Outro ao outro. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller;
[Tradução Vera Ribeiro; preparação de textos André Telles; versão final
Angelina Harari e Jésus Santiago]. – Rio de Janeiro; Jorge Zahar Ed., 2008.
Lacan, J (1986, 1969), Deux notes
sur l’enfant. Ornicar? no. 37,
p. 13-14, abr./jun., Paris, 1986.
Freud, S. (1996, [1909]) Notas sobre um caso de
neurose obsessiva (1909). In Duas Historias Clinicas. Obras psicológicas
completas de Sigmund Freud; edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago,
1996.
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Artigo estudado em 1996, aula da Professora Tânia Ferreira, psicanálise com crianças.
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