sábado, 3 de dezembro de 2011


SOCIEDADE 
ENTREVISTA  
A era do bebê turbinado

Para o neurologista Saul Cypel, está provado que crianças hiperativas são fruto de pais ansiosos e desencontros familiares contornáveis



 Revista Época, 04 de julho de 2001, p. 60 e 61.
                   
 por: CRISTIANE SEGATTO

Há três décadas, Saul Cypel, espe­cialista em neurologia infantil observa crianças hiperativas. É impossível não notar a chegada de uma delas ao consultório. O alvoroço logo toma conta da sala de espera. Quase simulta­neamente, arrastam cadeiras, avançam sobre lápis e canetas, pulam sem parar. A inquietude e o interesse pulverizado costumam ser interpretados pelos pais como sinais de vivacidade. Para Cypel, de 58 anos, pai de quatro filhas adul­tas, podem ser indícios de hiperativi­dade e dificuldade de atenção. O proble­ma é sério. Aparece nos primeiros meses de vida e desencadeia dificuldades de aprendizado e convivência social ao lon­go da vida. O neurologista explica que o distúrbio pode ser revertido com acom­panhamento adequado e, só em alguns casos, prescrição de medicamentos.

ÉPOCA: Por que as crianças de hoje se tor­nam hiperativas e desatentas? A culpa é dos pais ou do meio em que vivem? 

Saul Cypel: Tentar atribuir culpas não é uma boa estratégia. O comportamen­to da criança nasce da conjunção de fa­tores familiares com individuais. É difí­cil determinar a origem exata do pro­blema. Vemos famílias com três filhos nas quais apenas um é hiperativo. Tudo depende da interação de cada crian­ça com o ambiente em que vive. No en­tanto, notamos semelhanças na história dos hiperativos. Em geral, são crian­ças geradas em uma gravidez difícil, num ambiente cheio de ansiedade. Já nos primeiros meses, o bebê mostra­se inquieto. Com 2, 3 meses tem dificuldade para dormir. Acorda muitas vezes à noite. A solicitação da criança é tamanha que os pais ficam exauridos.





ÉPOCA: O que eles fazem de errado?


Cypel: Quando começam a se movi­mentar mais, as crianças criam tal de­sassossego que é impossível deixá-las sozinhas. Os pais não se sentem segu­ros sobre o que devem fazer e não con­seguem colocar limites. Os filhos cres­cem sem noção do que podem e do que não podem fazer. Tornam -se ansiosos e hiperativos.

ÉPOCA: Dormir com o bebê para tran­qüilizá-Ia é escolha?

Cypel: A criança que não consegue dor­mir sozinha perturba muito a vida dos pais. Lá pelas tantas, um deles resolve trazê-la para a cama ou então instalar­-se no quarto dela. Isso gera confusão. Quem dorme com a mãe no quarto é be­bezinho. Depois dos 4 meses, filhos têm de dormir sozinhos. Se a criança volta para a cama dos pais com 1 ano ou mais, passa a assumir a condição de uma criança mais nova. Os pais a colo­cam numa situação regredida, infantilizada. Ela cresce dependente, insegura e apegada.

SAUL CYPEL
Formação
Professor de neurologia infantil na Faculdade de Medicina da USP
Atividade
Coordenador da área de Saúde da Criança do Hospital Albert Einstein
Obra

Autor do livro A Criança com Déficit de Atenção e Hiperatividade



UM GUIA O livro do médico orienta pais, professores e profissionais da saúde



ÉPOCA: Em geral os pais percebem que há algo errado?

Cypel: Geralmente são inexperientes e não têm idéia do que seja o comporta­mento normal de uma criança. Alguns pais se sentem orgulhosos. Acham que o filho é mais esperto porque mexe na TV; puxa os enfeites da mesa, quebra a decoração, arrasta cadeiras. Confun­dem excesso de agitação com a energia da infância. Muitos chegam ao consul­tório com o filho de 6 anos terrivelmen­te agitado. A criança não consegue ficar sentada, empurra a cadeira de rodinhas pela sala. Os pais não se incomodam e dizem que só vieram porque a professora recomendou. Depois de cinco minutos, quem está em volta da criança nota que ela está além do limite. Os pais realmente não percebem. Para eles, está tudo bem.

DESENVOLVIMENTO SADIO

 Bebês devem acostumar-se a dormir sozinhos.

Atitudes aparentemente inofensivas, como trazer a criança para a cama dos pais, podem levar a dificuldades na execução de atividades que exigem atenção





 ÉPOCA: É verdade que o problema é mais comum entre os meninos?

Cypel: A cada quatro crianças hipera­tivas, aparece uma menina. É uma cons­tatação internacional. Há algumas hi­póteses para tentar explicar isso. Os me­ninos, pela própria natureza do sexo, são mais ativos, inquietos. Basta ver as brin­cadeiras. Eles se atracam, correm o tem­po todo. Na hora do recreio, as meninas normalmente conversam em grupos, enquanto os meninos chutam a lata de lixo. Para se divertir, eles precisam de atividade física mais intensa.

ÉPOCA: A hiperatividade pode ser resul­tado de um desarranjo biológico?

Cypel: As causas emocionais são freqüen­tes. É preciso esclarecer, em cada caso, quanto existe de componente neuroló­gico, quanto de emocional. Às vezes é difícil estabelecer essa distinção.

ÉPOCA: Limites estabelecidos desde cedo livram a criança da hi­peratividade?

Cypel: A criança é uma pedra bruta. Precisa ser lapidada. Pa­ra isso tem pai e mãe. Para di­zerem o que pode e o que não pode fazer. Se esse aprendiza­do for conduzido corretamente, os pais terão todas as chances de ver a criança crescer com o comportamento adequado. Crianças hiperati­vas apresentam grande dificuldade de convivência. Atormentam tanto as pes­soas que acabam sendo rejeitadas. Pa­ra muitos pais, a separação entre limi­te e agressão é tão tênue que eles não sabem como agir. Acham que dizer "não" a um filho é um ato extremamen­te violento. Aí a coisa vai desandando.


ÉPOCA: E as causas orgânicas?

Cypel: Quando existem, podem estar li­gadas a múltiplas situações. Trauma­tismo de crânio, infecções do sistema ner­voso, falta de oxigenação no momento do parto. Do ponto de vista prático, fi­ca difícil demonstrar a existência de le­são orgânica. Nesses casos, as crianças apresentam uma dinrinuição na concen­tração de alguns neurotransnllssores. Um deles é a dopamina. A substância interfere no mecanismo de aten­ção. Está provado que pouca doparnina leva à diminuição da atenção.

ÉPOCA: Nesse caso, o que é melhor: re­médio ou terapia?

Cypel: Medicamentos são indicados quando a hiperatividade e a desaten­ção são muito intensas e trazem pre­juízos de aprendizagem e dificulda­de de convívio social. Muitas vezes os pais conseguem reverter a situação sem remédios, apenas com a orienta­ção do médico. As crianças respondem muito bem. É como se elas estivessem ansiosas por socorro. As orientações são básicas, mas de difícil execução. Os pais não têm habilidade nem segu­rança para segui-Ias. Sentem-se incom­petentes para promover as mudanças. O melhor, então, é a terapia familiar ou de casal.

ÉPOCA: Hiperatividade é reversível?

Cypel: Na maior parte dos casos, sim. A alteração de comportamento das crian­ças indica que alguma coisa vai mal na família. Quando a luz vermelha acen­de, é a oportunidade de repensar como o grupo está vivendo. Encontramos pais que trabalham o dia todo, crianças com assistência familiar precária, mesmo com a presença da mãe em casa.

ÉPOCA: E qual é a solução?

Cypel: Sempre é tempo de refletir so­bre os relacionamentos. Entender como cada um funciona no papel de pai e mãe. O casal deixa de ter vida social por­que fica absorvido pelo filho que não dá sossego. Distancia··se dos amigos para alimentar a solicitação da criança. É im­portante quê os pais saibam que o pro­blema tem solução. Alguns hiperativos
caminham para a delinqüência. Mas, felizmente, essa não é a regra .•

 Cypel diz que os americanos exageram no uso de medicamentos para controlar crianças hiperativas. "Eles tratam os sintomas em vez de atacar as causas", afirma.

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