SOCIEDADE
ENTREVISTA
A era do bebê turbinado
Para o neurologista Saul Cypel, está
provado que crianças hiperativas são fruto de pais ansiosos e desencontros
familiares contornáveis
Há
três décadas, Saul Cypel, especialista em neurologia infantil observa crianças
hiperativas. É impossível não notar a chegada de uma delas ao consultório. O
alvoroço logo toma conta da sala de espera. Quase simultaneamente, arrastam
cadeiras, avançam sobre lápis e canetas, pulam sem parar. A inquietude e o
interesse pulverizado costumam ser interpretados pelos pais como sinais de
vivacidade. Para Cypel, de 58 anos, pai de quatro filhas adultas, podem ser
indícios de hiperatividade e dificuldade de atenção. O problema é sério.
Aparece nos primeiros meses de vida e desencadeia dificuldades de aprendizado e
convivência social ao longo da vida. O neurologista explica que o distúrbio
pode ser revertido com acompanhamento adequado e, só em alguns casos,
prescrição de medicamentos.
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ÉPOCA: Por que as crianças de hoje se tornam
hiperativas e desatentas? A culpa é dos pais ou do meio em que vivem?
Saul Cypel: Tentar atribuir culpas não é uma boa
estratégia. O comportamento da criança nasce da conjunção de fatores
familiares com individuais. É difícil
determinar a origem exata do problema. Vemos famílias com três filhos nas
quais apenas um é hiperativo. Tudo depende da interação de cada criança com o
ambiente em que vive. No entanto, notamos semelhanças na história dos
hiperativos. Em geral, são crianças geradas em uma gravidez difícil, num
ambiente cheio de ansiedade. Já nos primeiros meses, o bebê mostrase inquieto.
Com 2, 3 meses tem dificuldade para
dormir. Acorda muitas vezes à noite. A
solicitação
da criança é tamanha que os pais
ficam exauridos.
ÉPOCA: O que eles fazem de errado?
Cypel: Quando começam a
se movimentar mais, as crianças criam tal desassossego que é impossível
deixá-las sozinhas. Os pais não se sentem seguros sobre o que devem fazer e
não conseguem colocar limites. Os filhos crescem sem noção do que podem e do
que não podem fazer. Tornam -se ansiosos e hiperativos.
ÉPOCA: Dormir com o bebê para tranqüilizá-Ia é má
escolha?
Cypel: A criança que não
consegue dormir sozinha perturba muito a vida dos pais. Lá pelas tantas, um
deles resolve trazê-la para a cama ou então instalar-se no quarto dela. Isso
gera confusão. Quem dorme com a mãe no quarto é bebezinho. Depois dos 4 meses,
filhos têm de dormir sozinhos. Se a criança volta para a cama dos pais com 1
ano ou mais, passa a assumir a condição de uma criança mais nova. Os pais a
colocam numa situação regredida, infantilizada. Ela cresce dependente, insegura e apegada.
SAUL CYPEL
Formação
Professor
de neurologia infantil na Faculdade de Medicina da USP
Atividade
Coordenador
da área de Saúde da Criança do Hospital Albert Einstein
Obra
Autor
do
livro A Criança com Déficit de Atenção e Hiperatividade
ÉPOCA: Em geral os pais percebem que há algo errado?
Cypel: Geralmente são
inexperientes e não têm idéia do que seja o comportamento normal de uma
criança. Alguns pais se sentem orgulhosos. Acham que o filho é mais esperto
porque mexe na TV; puxa os enfeites da mesa, quebra a decoração, arrasta
cadeiras. Confundem excesso de agitação com a energia da infância. Muitos
chegam ao consultório com o filho de 6 anos terrivelmente agitado. A criança
não consegue ficar sentada, empurra a cadeira de rodinhas pela sala. Os pais
não se incomodam e dizem que só vieram porque a professora recomendou. Depois
de cinco minutos, quem está em volta da criança nota que ela está além do limite. Os pais realmente não percebem. Para eles, está tudo bem.
DESENVOLVIMENTO SADIO
Bebês devem
acostumar-se a dormir sozinhos.
Atitudes
aparentemente inofensivas, como trazer a criança para a cama dos pais, podem
levar a dificuldades na execução de atividades que exigem atenção
ÉPOCA: É verdade
que o
problema é mais comum
entre os meninos?
Cypel: A cada quatro
crianças hiperativas, aparece uma menina. É
uma
constatação internacional. Há algumas hipóteses para tentar explicar isso. Os
meninos, pela própria natureza do sexo, são mais ativos, inquietos. Basta ver
as brincadeiras. Eles se atracam, correm o tempo todo. Na hora do recreio, as
meninas normalmente conversam em grupos, enquanto os meninos chutam a lata de
lixo. Para se divertir, eles precisam de atividade física mais intensa.
ÉPOCA: A hiperatividade pode ser resultado de um desarranjo
biológico?
Cypel: As causas
emocionais são freqüentes. É preciso
esclarecer, em cada caso, quanto existe de componente neurológico, quanto de
emocional. Às vezes é difícil estabelecer essa distinção.
ÉPOCA: Limites estabelecidos desde cedo livram a criança da
hiperatividade?
Cypel: A criança é uma
pedra bruta. Precisa ser lapidada. Para isso tem pai e mãe. Para dizerem o
que pode e o que não pode fazer. Se esse aprendizado for conduzido
corretamente, os pais terão todas as chances de ver a criança crescer com o
comportamento adequado. Crianças hiperativas apresentam grande dificuldade de
convivência. Atormentam tanto as pessoas que acabam sendo rejeitadas. Para
muitos pais, a separação entre limite e agressão é tão tênue que eles não
sabem como agir. Acham que dizer "não" a um filho é um ato extremamente
violento. Aí a coisa vai desandando.
ÉPOCA: E as causas orgânicas?
Cypel: Quando existem,
podem estar ligadas a múltiplas situações. Traumatismo de crânio, infecções
do sistema nervoso, falta de oxigenação no momento do parto. Do ponto de vista
prático, fica difícil demonstrar a existência de lesão orgânica. Nesses
casos, as crianças apresentam uma dinrinuição na concentração de alguns
neurotransnllssores. Um deles é a dopamina. A substância interfere no mecanismo
de atenção. Está provado que pouca doparnina leva à diminuição da atenção.
ÉPOCA: Nesse caso, o que é melhor: remédio ou terapia?
Cypel: Medicamentos são
indicados quando a hiperatividade e a desatenção são muito intensas e trazem
prejuízos de aprendizagem e dificuldade de convívio social. Muitas vezes os
pais conseguem reverter a situação sem remédios, apenas com a orientação do
médico. As crianças respondem muito bem. É como
se elas estivessem ansiosas por socorro. As orientações são básicas, mas de
difícil execução. Os pais não têm habilidade nem segurança para segui-Ias.
Sentem-se incompetentes para promover as mudanças. O melhor, então, é a
terapia familiar ou de casal.
ÉPOCA: Hiperatividade é reversível?
Cypel: Na maior parte
dos casos, sim. A alteração de comportamento das crianças indica que alguma
coisa vai mal na família. Quando a luz vermelha acende, é a oportunidade de repensar como o grupo
está vivendo. Encontramos pais que trabalham o dia todo, crianças com
assistência familiar precária, mesmo com a presença da mãe em casa.
ÉPOCA: E qual é a solução?
Cypel: Sempre é tempo de
refletir sobre os relacionamentos. Entender como cada um funciona no papel de
pai e mãe. O casal deixa de ter vida social porque fica absorvido pelo filho
que não dá sossego. Distancia··se dos amigos para alimentar a solicitação da
criança. É importante quê
os pais saibam que o problema tem solução. Alguns hiperativos
caminham para a delinqüência. Mas,
felizmente, essa não é a regra .•
Cypel diz que os americanos exageram no uso de
medicamentos para controlar crianças hiperativas. "Eles tratam os sintomas
em vez de atacar as causas", afirma.
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