segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

A MÚSICA NAS INTERAÇÕES HUMANAS (2a parte)


2 A MÚSICA COMO INSTRUMENTO DE INTERAÇÃO 
  
“Já se deram conta, que a música faz livre o espírito? 
                                                                           Dá asas ao pensamento?  
Que alguém se torna mais filósofo,  
quanto mais se torna músico?” 

Nietzsche 

         
É  sabido  que  aspectos  estruturais  da  música  –  som,  ritmo,  melodia,  harmonia,  timbre, dissonância,  silêncio,  e  também  os  gestos,  entre  outros  –,  se  organizam  numa  linguagem simbólica que podem provocar sensações e expressões subjetivas nas pessoas. Como foi visto no  capítulo  anterior,  segundo  alguns  autores,  tudo  acontece  concomitantemente  de  forma complexa  e  interligada.  A  arte  tem  um  significado  subjetivo  para  cada  indivíduo  que  a experimenta.    Conceituar  a  arte  é  algo  complexo,  mas  o  que  há  de  comum  em  muitas  das ideias que partem de especialistas ou leigos, é que arte tem uma significação afetiva.

Levando em consideração o que foi dito, e sendo a música uma das possíveis manifestações artísticas,  abordar-se-á  algumas  ideias  sobre  a  musica,  conceituando,  refletindo  sobre  sua função e importância no campo da interação entre as pessoas e entre as pessoas e o seu meio.


2.1 Algumas reflexões sobre o conceito de música

A palavra música, tem origem do grego e se define como μουσική τέχνη - musiké téchne -, a arte das musas. A música constitui-se, estruturalmente, de uma sucessão de sons e silêncios organizados  ao  longo  do  tempo 6   e  espaço,  constituindo  um  complexo  de  interpretantes 7 .  É considerada  por  diversos  autores  como  uma  manifestação  cultural  e  humana.  Embora  nem sempre  seja  feita  com  um  objetivo  artístico,  a  música  é  considerada  por  muitas  sociedades como um elemento importante dentro das representações culturais.

Apesar da música ser intuitivamente conhecida por todos, seu entendimento completo é algo relativamente  complexo.  Encontrar  um  significado  que  abarque  todos  os  sentidos  da  sua prática é um desafio. Segundo Blasco (1999), o valor da música está no fato dela causar no ser humano efeitos no campo biológico, fisiológico, psicológico, intelectual, social e espiritual; e é por estes efeitos que o indivíduo buscará significar a música.

Um dos poucos consensos sobre o conceito de música é que ela consiste em uma combinação de  sons  e  de  silêncios  ou  em  sequências  sucessivas  e  simultâneas  que  se  desenvolvem  ao longo  do  tempo.  Para  Schafer  (1991,  p.  35)  “música  é  uma  organização  de  sons  (ritmo, melodia  etc.)  com  a  intenção  de  ser  ouvida.  Música  é  algo  que  soa.  Se  não  há  som,  não  é música”. Neste contexto incluem-se as variações  nas  características  do  som  (altura,  duração, intensidade  e  timbre) que  podem  ocorrer  sequencialmente  (ritmo  e  melodia)  ou  simultaneamente (harmonia). Ritmo, melodia e harmonia são entendidos aqui apenas em seu sentido de organização temporal, pois a música pode conter propositalmente harmonias  ruidosas  (que  contém  ruídos  ou  sons  externos  ao  tradicional)  e arritmias (ausência de ritmo formal ou desvios ritmicos). (PULLIG, 2010, p. 22)

Por  sua  vez,  são  inúmeros  os  conceitos  que  interpretam  a  música  como  uma  forma  de comunicação. La Compôte (1977) avalia a música como uma “linguagem sonora, isto é, a arte de expressar e transmitir os sentimentos vindos da alma, por meio de sons dispostos em séries e combinações de acordo com uma lógica”. Nesse contexto, Hargreaves (2004) considera que a música transcende fronteiras físicas e culturais. Desse modo, é possível, através da música estabelecer comunicação mesmo para pessoas que falam línguas distintas.

De  modo  análogo,  Cunha  (2009)  considera  a  música  como  uma  das  mais  importantes manifestações  sociais.  A  autora  postula  que  a  arte  musical  quando  ultrapassa  o  exercício desencadeador de sentimentos, de descarga emocional e do contágio afetivo, pode fazer parte da  vida  cotidiana,  como  um  fato  que,  simbolicamente,  se  transporta  aos  sentimentos  e emoções do ser. Também Blacking (1981), acredita que “a música é um fato social”. Segundo o autor, a arte não existe em produtos, mas sim em processos, através dos quais, cada pessoa por mais que esteja compondo um grupo, dá um significado específico à sua experiência.

Na tentativa de entender e explicar o que é a música, vários autores a conceituam, ou tentam defini-la, de diferentes  formas.  Alguns  a consideram  apenas sob um  viés  estrutural técnico, outros como uma expressão artística, com o  fim  em  si  mesmo; outros, porém, dão-lhe uma dimensão significante/comunicacional.

Para efeito desse trabalho, será abordado o conceito da música como linguagem, atribuindo à música  o  caráter  de  uma  ferramenta  capaz  de  gerar  significante,  comunicar  e  facilitar  a interação  entre  as  consciências  e  seu  meio,  capaz  de  provocar  sensações,  de  alterar  e reorganizar o meio. Para Craveiro de Sá (2003, p. 131), música são [...] forças sonoras que conduzem à formação de imagens, à visualização de cores,  cenas,  formas,  texturas  etc.  Música  que  narra,  que  descreve,  que disserta. Música que faz percorrer o tempo numa velocidade inconcebível ... música que conduz a um estado de pura virtualidade...música que transporta a  outros  lugares,  a  outros  tempos...música  que  conduz  a  outros  estados  de humor  e  de  consciência  ...  música  que,  muitas  vezes,  organiza  e,  outras tantas,  desorganiza  ...  música  que,  em  alguns  momentos,  equilibra  e,  em outros,  causa  reação  totalmente  contrária...  música-corporalidade,  música-tempo ... multiplicidades ...


A  música  é  uma  maneira  de  sistematização  que alia  som,  silêncio  e  ruído,  numa  sequência interativa, dentro do tempo, possibilitando combinações entre sua estrutura e seu meio.

2.2 A música enquanto sensações

É fato que a música tem um efeito de ‘tocar’ o ser humano de várias formas.  Para Montagu
(1905, p. 275)  tanto  a  verdade  quanto  a  comunicação  começam  com  um  gesto  simples:
tocar, que é a verdadeira voz da sensação, do sentimento. O toque amoroso, como a música, profere em geral as coisas que não podem ser ditas: nada  é preciso que se diga visto que tudo está entendido. As sensações geralmente tem  uma  qualidade  tangível,  isso  se  expressa  muitas  vezes  em  nossa linguagem […]

Em  várias  passagens  do  seu  livro  Tocar  –  o  significado  humano  da  pele,   este  autor  relata experiências  de  culturas  distintas  em  que  a  presença  da  música  ou  sons  ritmados  causam efeitos sobre os indivíduos e que todas as emoções provêm dos primeiros estímulos sensoriais que o bebê recebe do meio ambiente. Para este autor, as emoções estão associadas aos sons que o bebê ouviu ainda no ventre, como as batidas do coração e/ou a voz da mãe e outros sons que,  quando  já  fora  do  útero,  o  bebê  ouviu  como  as  conversas,  as  cantigas  de  ninar,  as músicas.  Esses  sons  podem  ter  um  efeito  tranquilizador  ou  aterrorizador,  dependendo  dos condicionamentos operados naquela tenra infância.  Em um relato sobre as mães esquimós, o autor escreve:


A  mãe  entoa  cantigas  para  o  filho  enquanto  lhe  dá  tapinhas  carinhosos, abraça-o  e  o  mantém  perto  do  corpo,  dentro  do  parka;  com  o  tempo  ele aprende  a  identificar  e  a  responder  à  sua  voz  como  substituto  para  o  seu toque.  Esta  é  uma  forma  de  condicionamento  reflexo,  em  que  o  sinal  do estimulo original, a voz, substitui o toque, mas a voz sempre conserva sua qualidade tátil, pois é tranquilizante, carinhosa, reconfortante. Ocupa bem o lugar da presença amorosa da mãe, cujo amor o bebê conheceu inicialmente através  do calor e  do apoio, da docilidade  e  da suavidade da pele  materna
que ele recebeu no atendimento que a mãe dedicou às suas necessidades, de modo  tanto  ativo  quanto  passivo,  estimulando-lhe  a  pele,  carregando-o, limpando-o e lavando-o. (MONTAGU, 1905, p.290)

É comum as pessoas utilizarem de qualidades táteis para conceituar sensações e experências que vivenciam diante de um som. Assim, dizer que a voz de alguém é macia, aveludada ou é como uma carícia demonstra como os sons são definidos pelas sensações que seriam próprias a outros órgãos sensoriais, no lugar da audição.

Montagu (1905) lembra que Sally Carrighar, em sua autobiografia, conta que, aos seis anos, ouviu um famoso violinista tocar e sua sensação era de que recebia o som não apenas pelos ouvidos, mas também, através da pele de todo o corpo. O mesmo autor também lembra que Edmund  Carpenter  comenta  que,  não  raro,  cantores  determinarem  a  altura  do  som  pela sensação que o mesmo lhe causa. Uma experiência que não seria diferente do rock, em que a pessoa sente a música, geralmente com o corpo todo.

Segundo Langer (2004) os psicólogos Helmholtz e Wundt, consideravam a música como uma sensação  prazerosa,  ocasionadas  por  seus  arranjos.  A  mesma  autora  acrescenta  que  os pensadores  Rousseau,  Kierkegaard  e  Croce,  acreditavam  na  ideia  da  música  como  catarse emocional e sua essência seria a auto expressão. Esta mesma ideia também é compartilhada pelos músicos Beethoven, Schumann e Liszt. Para Howard (1984, p.23) “a música é a relação entre os sons e não o próprio som, qualquer que seja o grau de artifício e de complexidade de sua sucessão”.

Para a mesma autora a música é capaz de nomear e acessar os sentimentos, visto que atinge uma comunicação em  linguagem  não verbal.  A autora considera que a  música pode ser um mecanismo  para  “descarregar  nossas  experiências  subjetivas  e  restaurar  nosso  equilíbrio  emocional” ( LANGER, 1989, p. 217). Ou seja, o sujeito se constitui como uma realidade que  compreende um  entrelaçamento de múltiplos componentes e que, em contato com a  música pode experimentar sensações agradáveis ou não.

Subitamente tudo parece  mais suave  e  mais  complexo,  o  mundo  vira uma mistura   discernível   de   múltiplos   tons,   cores,   ritmos,   intensidades, reverberações, cadências, qualidades, acontecimentos... O que  era Um vira muitos, o que estava subsumido a um Plano único vira um folheado, o que parecia      hierarquizado      torna-se      ramificado,      uma      pulverização, reagrupamentos,  novas  dimensões,  proliferações...  (PELBART,  1993,  p. 96).

Aspectos que Sacks (2007) ratifica ao transcrever um trecho de carta de um de seus pacientes, portador da Síndrome de Tourette 8 . Nesta carta, seu paciente comenta os efeitos da  música sobre  seus  tiques,  quando  em  contato  com  a  música,  quando  narra:  “Pode  ser  tanto  uma bênção  como  uma  maldição  para  os  meus  tiques.  Pode  pôr-me  em  um  estado  no  qual  me esqueço  completamente  da  síndrome  de  Tourette  ou  provocar  um  surto  de tiques  difícil  de controlar ou de suportar” (SACKS, 2007, p. 221).

Segundo Piazzetta (2008) alguns estudos filosóficos, antropológicos e neurocientíficos  mais recentes, buscam entender o universo da música e sua relação com o homem. Os estudos neste campo abarcam a inter-relação que se processa e sua capacidade perceptiva. Neste contexto, utilizando-se  dos  conceitos  formulados  a  partir  da  concepção  sistêmica,  a  música  está  para além da lógica e da racionalidade e participa de uma estrutura mental que comporta também aspectos  do  inconsciente,  com  suas  contradições  e  afetos.  Nesse  sentido,  segundo  Cunha (2009), é que Vygotsky afirma que “a verdadeira natureza da arte estaria contida no conflito entre emoções opostas, na contradição que se estabelece entre a forma e o conteúdo da obra que acarretariam na transformação dos sentimentos.” (CUNHA, 2009, p.3)

Assim,  a  música  pode  atingir  o  homem  através  de  dois  conjuntos  de  características:  as  de caráter estrutural e afetiva (HERRINGTON E CAPELLA, 1996). Aspectos que levam a Joy (1998) a propor que através dos processos interativos e sob uma perspectiva cognitiva, pode-se compreender as relações que se estabelecem entre os indivíduos e o seu meio.

6  Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Musica>.
7  Para Peirce (2000), o interpretante é o potencial interpretativo contido em algo. É o terceiro elemento que, atuando como mediador entre objeto e signo, completa a tríade que faz emergir a semiose. Assim, o
interpretante, através da síntese intelectual frente ao objeto e o signo, deixa de ser apenas potencialidade para gerar outro(s) signo(s).
8   A  Síndrome  de  tourrete  é  uma  doença  de  fundo  neurocerebral  que  foi  descrita  em  1885  por  Gilles  de  La Tourette e consiste em manifestação de tiques compulsivos, repetitivos, com movimentos rápidos, muitas vezes repentinos e acompanhados de coprolalia, que são vocalizações de palavrões descontextualizados.  Ainda não foi descoberta a cura para essa doença que se inicia na infância, mas que pode ter seus sintomas diminuídos na vida adulta.

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