Este texto é parte da monografia de Kelly Elaine de Oliveira e Ludmila Helena de Assis e Freitas Moura, apresentada no curso de graduação em Licenciatura em Música da UEMG em julho/2012, com o título "A música nas interações humanas: estudo teórico aplicado no Hospital Espírita André Luiz, sob orientação do Prof. José Antônio Baeta Zille, tendo Eliana Olímpio como co-orientadora. (contato com as autoras, vide final do texto)
1 INTERLIGAÇÃO SUJEITO-OBJETO
“Isto sabemos.
Todas as coisas estão ligadas
como o sangue que une uma famlia...
Tudo o que acontece com a Terra,
acontece com os filhos e filhas da Terra.
O homem não tece a teia da vida;
ele é apenas um fio.
Tudo o que faz à teia,
ele faz a si mesmo.”
Ted Perry
A interação dos elementos do ambiente com os seres vivos possibilita a troca de matéria, energia e informação, interligando coisas, processos, pessoas e consciências, garantindo a dinâmica vital da Terra. A qualidade desse ambiente não é fator nem do espaço físico, tão pouco do homem, mas da relação que se processa entre eles. Relação esta, que se organiza em sistemas complexos e abertos, sujeitos a toda sorte de influências e interferências. Por sua vez, por ser complexo, o ambiente não deixa de ser um sistema, que em última análise, envolve uma infinidade de outros sistemas. São as relações entre estes sistemas, o fator essencial que favorece ou não o desenvolvimento e a existência dos seres inseridos no ambiente.
Neste capítulo, estudar-se-á o paradigma emergente que abarca uma nova concepção sistêmica, em que as interações entre os seres humanos e meio são determinantes para um ciclo vital saudável. Em seguida, serão apresentadas algumas ideias interacionistas que fazem eco com essa visão e, por último, serão traçadas algumas considerações sobre a arte e seu papel no meio e sua relação com o ser humano.
1.1 Uma nova concepção sistêmica
Para se compreender da natureza da vida à dimensão social do ser humano é necessário refletir sobre o paradigma emergente, pelo qual se tem uma visão do mundo como um sistema integrado e ecológico, deixando para trás as ciências mecanicistas dos séculos passados. Nesta concepção, entre outras coisas, não se concebe uma separação entre mente e corpo. A consciência e a mente, sob essa perspectiva, são entendidas como processos integrados.
A física quântica permitiu entender que a matéria é energia. Sob essa perspectiva, a relação que se estabelece entre matéria e energia pode ser compreendida a partir do todo. Esta maneira de ver o universo e tudo que o constitui, levou a conceber que corpo e ambiente podem ser compreendidos a partir também de um todo, mostrando que as barreiras que os colocavam em condições distintas se tornam cada vez menos definidas. Esta concepção sistêmica da vida não classifica as coisas como elementos separados, mas como partes de padrões vibratórios integrados, onde as características mais importantes não estão em suas partes, mas na maneira como estas se relacionam (CAPRA, 2002). Os elementos que compõem o universo perdem os seus contornos e estendem-se num continum onde “os objetos têm fronteiras cada vez menos definidas; são constituídos por anéis que se entrecruzam em teias complexas com os dos restantes objetos, a tal ponto que os objetos em si são menos reais que as relações entre eles.” (SANTOS, 1991, p. 34)
É também de Santos (1991) a afirmação de que “Heisenberg e Bohr demonstram que não é possível observar ou medir um objeto sem interferir nele, sem o alterar, e a tal ponto que o objeto que sai de um processo de medição não é o mesmo que lá entrou”. O mesmo autor cita Ilya Prigogine, cuja teoria estabelece que as estruturas funcionam através de sistemas abertos, com interação de processos segundo uma lógica de auto-organização em que a mínima flutuação de energia pode conduzir a um estado distinto. Neste sentido, os ambientes e os indivíduos nele inseridos estão em constante interação. Assim, qualquer interferência produziria uma modificação neste ambiente e nos indivíduos nele inseridos.
Morin (1979, p.120), referindo-se à complexidade dos ambientes e de seus indivíduos, escreve que
[...] a diferença fundamental entre os organismos vivos e as máquinas artificiais diz respeito à desordem, ao ruído, ao erro. Na máquina artificial, tudo o que é erro, desordem, aumenta a entropia, provocando a sua degradação, sua desorganização enquanto que, no organismo vivo, apesar de, e com a desordem, erro, os sistemas não provocam necessariamente entropia, podem até ser regeneradores. É o processo (organização do ser vivo) de autoprodução permanente ou autopoiesis ou reorganização permanente, proporcionando, aos sistemas vivos, flexibilidade e liberdade em relação às máquinas. Princípios estes que são os de organização da vida, que são os da complexidade.
Analogamente às ideias de Prigogine apresentadas por Santos (1991), Morin (2000) considera os ambientes funcionando em redes de interação em que seus elementos agem e retroagem uns sobre os outros, assim como entre as partes e o todo. Este processo se dá mediante lógicas já conhecidas, e ainda, consideras as que estão por conhecer, numa dialógica que consiste em reconhecer a unidade, a multiplicidade e a diversidade. Esta lógica funciona numa perspectiva de organização e reorganização permanente tendo na sua base a instabilidade e o caos.
Estas ideias deram condições para se considerar o planeta Terra como um grande ser vivo, como proposto na hipótese de Gaia, do autor Lovelock, citado por Capra (2002). Para aquele autor o mundo possui a capacidade de auto sustentação, ou seja, é capaz de gerar, manter e alterar suas próprias condições de existência. A partir dessa visão, Maturana e Varela (1984) desenvolvem a teoria de Santiago, que consiste numa formulação sistemática dos princípios de organização dos seres vivos e não vivos com seu ambiente. A ideia central dessa teoria é a identificação da cognição, o processo de conhecimento com o processo do viver. Segundo Maturana e Varela (1984) a cognição é a atividade que garante a auto geração e a auto perpetuação das redes vivas. Em outras palavras, o processo cognitivo é o próprio processo da vida. A atividade organizadora dos sistemas vivos, em todos os níveis de vida é, portanto, uma atividade mental.
Para Capra (2002, p.14):
As interações de um organismo vivo vegetal, animal ou humano - com seu ambiente são interações cognitivas. Assim, a vida e a cognição tornam-se inseparavelmente ligadas. A mente – ou melhor, a atividade mental – é algo imanente à matéria, em todos os níveis de vida. Essa é uma expansão radical do conceito de cognição e, implicitamente, do conceito de mente. De acordo com essa nova concepção, a cognição envolve todo o processo da vida - inclusive a percepção, as emoções e o comportamento - e nem sequer depende necessariamente da existência de um cérebro e de um sistema nervoso.
Com o avanço da ciência, cada vez mais as diferenças entre o orgânico e o inorgânico se tornam menos evidentes. Santos (1991, p. 37) cita:
As características da auto-organização, do metabolismo e da auto-reprodução, antes consideradas específicas dos seres vivos, são hoje atribuídas aos sistemas pré-celulares de moléculas. E quer num quer noutros reconhecem-se propriedades e comportamentos antes considerados específicos dos seres humanos e das relações sociais.
Algumas teorias orientam a superar as visões positivistas e homocêntricas, ao considerar o ambiente como parte de uma subjetividade. É o caso, dentre outras, da teoria das estruturas dissipativas de Prigogine 2 (1996) e da teoria da matriz de Geoffrey Chew 3 também chamada ‘bootstrap’. Estas teorias trazem em sua concepção a ideia de que a aparente organização do universo é ilusória, já que este é concebido no caos. Organismos vivos e não vivos, matéria inerte e em movimento, ondas e vibrações interagem aleatoriamente e contém em si consciência que, não necessariamente, será percebida pela consciência humana. Por sua vez, este mesmo universo e o que o compõe se estabelecem nessa dinâmica, como sistemas complexos que se relacionam de forma efetiva, exercendo ações uns nos outros.
1.2 O homem e o meio
Aristóteles (1973), em seu livro, Metafísica, em sua explicação sobre o Cosmos, refere-se ao significado do ser 4 como uma variada e extensa gama de possibilidades. Segundo o autor, que viveu entre 384 a 322 a.C., todo ser compartilha de um mesmo princípio, uma essência que une todos os seres. Afirma, ainda, que esta essência se apresenta em diversas aparências e que há quatro causas responsáveis por proporcionar mudanças em sua aparência: causa material, causa formal, causa eficiente e causa final. Assim, tudo o que compõe o universo é constituído da mesma essência que se manifesta segundo essas causas, fazendo com que umas sejam distintas às outras. Com base nestes princípios é que Aristóteles reconhecia o cosmos
como parte do ser e vice versa.
2 Ilya Prigogine aponta para a instabilidade do universo e sustenta que a ciência deve incorporar no seu escopo os critérios do indeterminismo, da assimetria do tempo e da irreversibilidade.
3 O modelo bootstrap de Geoffrey F. Chew afirma que a percepção de concretude e finitude da matéria devem-se a uma ilusão provocada pelas limitações humanas no nível sensorial e de consciência.
4 Para Aristóteles o Ser é tudo o que é passível de existência.
Em outro estudo, Aristóteles amplia seu pensamento e discorre sobre a estrutura da sociedade e evidencia a essência do homem enquanto um ser social. Sob uma perspectiva semelhante, Vygotsky (1995) postula que o homem não se constitui humano por características unicamente biológicas, mas por fatores sócio culturais. Segundo o mesmo autor, o humano não está apenas nas suas características genéticas, mas na combinação dessas características com as interações que ele estabelece com o outro, no meio em que vive. “Na ausência do outro, o homem não se constrói homem”. (VYGOTSKY, 1994, p.68)
O foco de Vygotsky (1995) é sobre a relação que cada indivíduo estabelece com o meio. Ou seja, sobre a experiência pessoalmente significativa, em que o homem modifica o meio e é por ele modificado. Este autor ainda postula que cada ser humano se desenvolve de acordo com suas vivências, aliadas a processos biológicos, psicológicos e genéticos e que o aprendizado se dá no contato do homem com o seu meio.
O processo psicológico de pensamentos e ações não está pronto quando nascemos. É no decorrer da vida que vão sendo construídos. Com isso, o ser humano vai criando um repertório de conhecimentos, habilidades e percepções. A partir desse pressuposto, Vygotsky (1994) classifica o desenvolvimento psicológico em filogenético, sociogenético, ontogenético e microgenético.
Para entender o desenvolvimento psicológico é preciso levar em conta o desenvolvimento: filogenético, ou seja, da espécie; sóciogenético, em outras palavras, o desenvolvimento social/cultural da espécie humana; ontogenético, ou a história do indivíduo, seu desenvolvimento ao longo de sua história; e microgenético, ou um aspecto da história de determinado indivíduo. Esses quatro planos interagem: pertencemos a uma espécie, estamos inseridos em uma cultura, vivemos nossa ontogênese e as microgêneses vão acontecendo a vida toda, no decorrer dos nossos dias. (FITTIPALDI, 2006, p.77)
Segundo este autor, para Vygotsky os quatro planos de desenvolvimento, juntos, caracterizam o funcionamento psicológico do ser humano. O processo de evolução da espécie humana e do desenvolvimento de cada um resultam das evoluções naturais e culturais e ambas estão interligadas.
5 Em A Política, Aristóteles, trata do sistema social da sua época, influenciando muitos dos pensadores que vieram posteriormente.
Esta ideia, de que os seres humanos nascem num meio sócio cultural, e isso será uma das principais influências no seu desenvolvimento, é a base da teoria interacionista de Vygotsky. Segundo suas ideias, é pela interação social que o ser humano aprende e se desenvolve, cria novas formas de agir no mundo, ampliando ferramentas de atuação no contexto cultural complexo em que se está inserido, durante todo o ciclo vital.
Pensamento semelhante tem Mogilka (2005), para quem o homem se torna homem pelo resultado da interação de três grandes forças: a genética, a sociedade e a cultura. Segundo o autor, sem a interação desses fatores, não seria possível a construção do ser homem, pois o que existe “são potencialidades, tendências, funções, impulsos, desejos. As formas e estruturas são o resultado da interação dessas tendências e potencialidades com a cultura e as relações sociais.” (MOGILKA, 2005, p. 372). Segundo o mesmo autor, sem a interação entre cultura e genética não existiria a construção humana. O ser humano precisa de uma boa constituição genética e bons estímulos culturais para que, cognitivamente, possa se desenvolver.
Nesse contexto, a mediação do outro e com o outro e, também, das coisas e com as coisas são fundamentais para que ocorra o desenvolvimento, já que é por meio das interações, que o sujeito passa a ter uma significação subjetiva, internalizando suas vivências. Quando essa mediação é feita pelo outro, trata-se de mediação pedagógica, assim como a mediação semiótica são as interações feitas pelos e com os signos. Nesse sentido, o autor esclarece que: “todo estímulo condicional criado pelo homem artificialmente e que se utiliza como meio para dominar a conduta – própria ou alheia – é um signo [...]” (VYGOTSKY, 1995, p. 83).
Sob essa perspectiva, há de se considerar dois momentos importantes que favorecem a explicação do uso dos signos no desenvolvimento humano. O primeiro, diz respeito ao estímulo externo que tem uma representação específica para cada sujeito. O segundo momento refere-se aos estímulos que já introduzidos no contexto social, se tornam símbolos e que na sua interação, passam a ter uma significação coletiva, desencadeando assim, um processo de linguagem.
Segundo Vygotsky (1994) se de um lado a combinação da cognição e da afetividade seria capaz de dar conta da quantidade de estímulos que o ser humano recebe do meio, de outro, o sistema nervoso humano não consegue processar todos os estímulos que chegam. No entanto, na cultura existem artifícios para se conseguir unificar estas duas dimensões do humano. Um destes artifícios é a arte.
Vygostky (2001) relaciona as artes, a semiótica e a educação, e analisa os mecanismos de construção estética a partir da dialética homem cultura. Em citação de Cunha (2009, p. 4) vê-se que o imaginário do ser humano é construído
[…] nos fatos que encontra e vivencia no decorrer das interações sociais. As fantasias seriam combinações de elementos retirados da realidade e reelaborados pela imaginação. Percebe-se por essa exposição que os sentimentos, imagens e pensamentos que se reorganizam enquanto o ser
humano partilha a música, procedem de vivências reais, de experiências já apropriadas e constituintes de suas subjetividades.
A arte seria um instrumento que possibilitaria equilibrar o organismo ao seu meio, além de também, externalizar emoções e sentimentos como: alegria, ansiedade, agressividade, medo, raiva, angústia e outros. Os sentimentos provocados pelo contato com a arte podem superar os sentimentos vivenciados e ainda não resolvidos, rompendo o equilíbrio interno. Assim, ao ser afetado pela arte, toda sorte de sensações podem se manifestar e vir a tona. Nesse sentido, Vygotsky (2001, p. 315) esclarece que “a refundição das emoções fora de nós realiza-se por força de um sentimento social que foi objetivado, levado para fora de nós, materializado e fixado nos objetos externos da arte, que se tornaram instrumentos da sociedade”.
Contatos:
Kelly: mgprodutoracultural@yahoo.com.br
Ludimilla: ludmilahe@yahoo.com.br
Orientador José Antônio: jbzille@yahoo.com.br
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