4.3.3 Das musicistas
O impacto dos afetos demonstrados pelos ouvintes interfere diretamente na atuação das musicistas. Naturalmente, estas também foram afetadas, fazendo-as muitas vezes, corarem, tremerem, perderem a sequencia das notas musicais, esquecerem a noção de tempo e espaço, dentre outras manifestações.
Dependendo da expressão e do comportamento dos ouvintes, muitas vezes as musicistas ficavam apreensivas e em alerta. No episódio em que a paciente dançava como bailarina e aproximou-se colocando a cabeça no colo da violinista fez com que esta, de certa forma, ficasse mais atenta para as vivencias que poderiam advir deste comportamento, mantendo-se mais vigilante. Por outro lado, as musicistas diante destas manifestações, mesmo se surpreendendo, procuravam manter a concentração na performance musical, ao mesmo tempo que acolhiam as experiências vivenciadas. Isto demonstra, conforme exposto nos capítulos teóricos deste trabalho, a existência de uma interação no ambiente de forma dinâmica e que envolve todos ali presentes, neste caso, tanto entre os observadores (musicistas), quanto observados (ouvintes).
Outra ocasião que deixou uma das musicistas muito afetada, chegando inclusive a perder a atenção da partitura, foi numa apresentação no pátio, em razão das comemorações de final de ano. As musicistas tocavam fazendo um fundo musical para a fala do diretor geral do hospital que fazia um discurso. Então, uma paciente descontroladamente começou a gritar, aparentemente calma, mas com traços de algum transtorno: Hipócrita, hipócrita! Tal exacerbação da voz da paciente, junto aos murmúrios dos ouvintes fez uma das musicistas descontrolar e parar com a música. Castro (2007) afirma que escutar uma música pode possibilitar ao sujeito revivenciar uma experiência. A musicista relata que todas as vezes que ouve a tal música que fazia fundo ao discurso, relembra da cena com todos os seus detalhes.
Também, muitos pacientes procuravam as musicistas ao final das apresentações para cumprimentá-las, falar sobre música, para contar sobre sua vida e seus afetos. Nota-se que a música, como afirmam Tomatis e Vilain (1991), introduzida num ambiente, tem a capacidade de integrar as pessoas, aproximando-os para uma inter-relação cujo produto é produtivo e benéfico. A música funciona como um mediador entre os indivíduos.
Há de se considerar diferenças entre se interpretar uma música em uma sala de concerto e interpretar a mesma música em uma praça, presídio, hospital ou em qualquer outro lugar. A maior e notável diferença está na forma de manifestação do como a música é capaz de afetar os ouvintes, o que comprova que o ambiente, assim como os ouvintes, imprimem um significado ao resultado sonoro. Gritos, agitações, palmas ou mesmo, o simples fato de ser um hospital ou outra instituição, afetam as musicistas numa interpretação musical. Com a experiência adquirida nestas apresentações, as musicistas conseguem hoje, perceber, com maior clareza, que as reações de alguns ouvintes neste hospital, que gritam, choram ou se agitam é apenas a demonstração de que ele está sendo afetado pela música.
De um mesmo modo, as musicistas puderam perceber uma grande satisfação em estar ali se apresentando para aquele público específico. Espontaneamente se apresentarem em ambientes em que o que se espera não é o perfeccionismo técnico geram um prazer nas mesmas, sem deixar, contudo, que elas não primem por uma performance de alto nível. Estas, por estarem ali por vontade própria e de forma descontraída, acabam obtendo um resultado técnico e sonoro muito satisfatório, acreditando ainda que a performance no HEAL sensibiliza e as estimula para novas experiências artísticas e culturais.
Considerações finais
“[...] Hoje, vocês fizeram toda uma diferença pra mim.”
Uma paciente do HEAL - 2012
A ciência moderna se valeu do modelo de racionalidade do positivismo lógico, mecanicista e materialista perdurando, predominantemente, de meados do século XVI até fins do século XIX. Por sua vez, o século XX introduziu o fim da hegemonia científica, baseada nos preceitos da ciência moderna e fez emergir uma nova ordem. Dentro desta nova perspectiva, conceitos adequados a ela têm surgido, e teorias são reformuladas, no sentido de se desdobrarem para dar sentido às questões que se colocam em todos os campos: matemáticos, sociológicos, psicológicos, humanos, políticos e outros. O paradigma emergente dessa perspectiva, que norteiam a construção de novos conhecimentos, recorre a novos pressupostos epistemológicos onde a investigação considera a intersubjetividade, os métodos qualitativos, a descrição e a compreensão do objeto estudado. Também incorpora os conceitos de sistema,
rede e inter-relação, em que tudo o que compõe o universo está intimamente ligado e todas as ações geram um efeito como consequência.
Com base nesses pressupostos, este trabalho se desenvolveu no sentido de buscar substratos teóricos que permitissem compreender os processos que se instauram nas relações entre os sujeitos e entre estes mesmos sujeitos e seu meio. Nesse sentido, pode-se constatar que num processo constante e crescente, o ser humano cria e recria significados e, através de artifícios como a ciência, a arte e suas crenças, constroem outros tipos de relações que atuam nas suas subjetividades com reflexos que vão além se si mesmos.
Dentro deste contexto, se de um lado o ser humano produz seu universo cultural, nada impede que este universo seja produzido por ele. Ou seja, o ser humano não é autor exclusivo de suas obras, ou seu mero efeito. Os artefatos humanos promovem diferenças, desvios, transformações no modo de se pensar e de lidar com o mundo que não podem ser totalmente deduzidas ou extraídas de um conjunto de capacidades e habilidades mentais prévias.
Direcionados por esta perspectiva, neste trabalho, transitou-se pelo universo da música, justamente aquele em que a ressalta no seu potencial de afetar e até mesmo promover mudanças, seja nos sujeitos em contato com ela, seja no meio em que estes se encontram. Nesse sentido, pode-se perceber que este potencial é verdadeiro e enorme. A música, mais que uma produção humana, é um elemento da cultura que pode funcionar como catalisador das relações entre os sujeitos e entre os sujeitos e seu meio.
Ao se promover as observações direcionadas a que se propôs esta pesquisa, puderam-se encontrar os aspectos, na prática, que sustentam a afirmação de que as performances musicais apresentadas aos pacientes e outros ouvintes presentes no Hospital Espírita André Luiz afetam todo o contexto daqueles sujeitos como a eles mesmos e aqueles que a realizam. Nesse sentido, e de acordo com os autores com quem se travou diálogo nesse trabalho, pôde-se colecionar uma série de eventos, resultados da afecção proporcionada pela presença da música naquele ambiente, muitas vezes tido como inapropriado para sua realização. Independente disso, a música, alheia a qualquer coisa que a sociedade lhe defina, exerce um de seus papeis: o papel de afetar.
A condição de proporcionar afetos é intrínseca à música. Afetos geram sentimentos e atuam na subjetividade daquele que é afetado por ela. Nesse trabalho, não se teve a intenção de diagnosticar ou mesmo analisar os sentimentos proporcionados pela música, ou mesmo o seu caráter terapêutico. Estes aspectos são pontos que se necessitam estudos específicos e mais aprofundados.
No entanto, sejam pelas observações realizadas, sejam por depoimentos informais de profissionais e mesmo de pacientes, os afetos proporcionados pela música levaram a alterações, sejam comportamentais, sejam quanto à percepção de si mesmos e do seu contexto. Ressalta-se aqui que, a maioria dos depoimentos afirma que a presença da música no contexto do HEAL trouxe acréscimos positivos na rotina terapêutica daquela instituição.
Apesar de ser, este último, um dado interessante, para o contexto desse trabalho, apenas aponta para pesquisas futuras, mais adequadas metodologicamente. Assim, esse trabalho, além de poder ratificar as hipóteses levantadas inicialmente, ainda acena para possibilidades de continuidade de estudos os quais aqui, apenas foram iniciados.
Com esse trabalho, puderam-se confirmar novas possibilidades de público, assim como novas qualidades da música. Desse modo, público, músicos, música e ambiente, interligados e interagindo entre si podem ser, e na verdade o são, uma coisa só. É isso que sugere Santos (1991), Morin (2000), Capra (2002), Maturana e Varela (1984) entre outros ao formularem a teoria da complexidade, no paradigma emergente. Executar música em um meio como o Hospital Espírita André Luiz modificou o olhar das musicistas diante das pessoas, da saúde mental. Também ampliou para as musicistas as inúmeras possibilidades que a música pode favorecer enquanto instrumento de interação. Segundo as observações a música afetou pacientes, profissionais, elas mesmas e com isso modificou o meio, proporcionando momentos agradáveis de interação, ao mesmo tempo em que pôde ser utilizada como ferramenta importante enquanto recurso terapêutico dentro do hospital.
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