domingo, 19 de agosto de 2012


“CRÔNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA”: a sala de aula
Por: Paulo Volker*
NO ANO 2160
Estamos no ano de 2160. Não há mais sala de aula. Antigamente, dava-se esse nome à reunião forçada de 40, 50 crianças ou jovens entre quatro paredes, havendo, em média, um espaço de um metro e meio entre cada um. Este fato é hoje estudado nas aulas de história, como se estuda, com espanto, as antigas celas onde ficavam os padres nos mosteiros medievais.

Para se entender o que era uma sala de aula, são estudados fragmentos arqueológicos relativos às práticas realizadas nesses locais. Impressiona-nos hoje a insensibilidade das pessoas da época, que não percebiam ser biologicamente impossível manter ordem nesses lugares, tendo organismos tão agitados como crianças e jovens; ser fisicamente impossível manter a serenidade em pessoas com a capacidade de gerar e acumular tanta energia. E nos espantamos ainda mais com o fato de vários locais desse tipo terem conseguido, por métodos misteriosos e desconhecidos, manter tantas crianças e jovens parados, assentados e “atentos” por quatro ou seis horas todos os dias!

Hoje nos perguntamos: o que faziam lá? Como conseguiam fazer isso? Faziam uso de alguma droga? Algum método hipnótico? Olhamos pela janela do CENTRO COMUNITÁRIO DE EDUCAÇÃO, com seus grandes gramados se perdendo no horizonte, anfiteatros, quadras de esporte, onde grupos de jovens e crianças orientados por tutores caminham, e ficamos imaginando como seria possível manter essas pessoas presas e fechadas em um mesmo ambiente por anos. Como seriam esses jovens que se submetiam a essa condição?
 Hoje, ao conectar o seu comunicador pessoal com um centro de educação, o jovem inicia um diálogo permanente com seu tutor. Sendo um aparelho extremamente leve e ergonomicamente confortável, o comunicador permanece ligado 24 horas por dia, permitindo que o jovem fale, ouça e receba imagens visuais por todo o tempo. O tutor participa da vida do jovem quando é solicitado. Nessa condição, gerencia roteiros educacionais que vão desde uma reunião com outros jovens para uma audiência musical, até uma excursão em florestas tropicais.

O tutor é funcionário de uma empresa que é uma “Operadora Educacional”. Presta um serviço por tempo determinado, contratado por uma família para educar uma pessoa. Dentre os vários programas vendidos pela operadora, existem a “Tutoria Total”, que se inicia no nascimento da criança e vai até os 18 anos, e as “Tutorias Parciais”. O objetivo dessas empresas é dar ao jovem o conhecimento geral do mundo e orientá-lo para exercer um papel na sociedade escolhido pelo próprio jovem.

A tecnologia dos comunicadores permite que o tutor atue quase como um “superego” do jovem. Ele, o tutor, responde “on line”a qualquer solicitação. Providencia tudo de que o jovem precisa, desde comida até locomoção e moradia. Organiza roteiros, encontros, atividades esportivas, culturais, políticas, enfim, tudo o que é necessário para o jovem aprender o que quer. Evidentemente, trabalha dentro de uma estratégia discutida e aprovada pelos pais.

A base de toda essa atividade são os CENTROS COMUNITARIOS DE EDUCACAO. Ocupando espaços de, em média, 500 hectares, esses centros são áreas de preservação da natureza, possuem bosques e florestas de alta diversidade biológica e, ao mesmo tempo, são centro de tecnologia de ponta na área educacional.

A filosofia básica de montagem desses equipamentos é a diversidade, como um retrato do que é a vivencia da humanidade hodiernamente, algo como urbis et orbis dos antigos romanos. Somada a essa ideia, vem a pedagogia vivencial, que orienta o estudante a vivenciar para aprender. As salas de realidade virtual, que reproduzem toda a atmosfera de um fato, sensibilizando todos os sentidos, possibilita, por exemplo, que o aluno participe efetivamente da Revolução Francesa como um dos personagens, já que os softwares são interativos. A ação do aluno determina a trajetória do fato histórico levando à construção de uma nova feição dos fatos. Assim, na história ou na ciência, salas de realidade virtual são um componente fundamental para que o aluno simule sua atitude, seu comportamento, suas reações, tendo como pano de fundo a história da humanidade.

Esses exercícios são sempre conjugados com atividades reais de esporte, polêmica – debae entre alunos sobre determinado tema, com exercício de retórica e política (capacidade de compor interesses divergentes) – excursões, ações sociais – atividade de ajuda visando ao bem comum – e tradição – vivencia de atividades tradicionais desenvolvidas em várias épocas históricas da humanidade, como agricultura, luta corporal, construção com pedras, dentre outras.

Esse contexto educacional envolve uma concepção de que duas coisas são essenciais: o espaço e a vivencia – aprende-se o que se vive. Dessa forma, fica muito difícil entender o que era uma sala de aula no século XX. Os achados arqueológicos nos levam a uma construção datada de 1998, numa localidade denominada “Horizonte Perdido”, ou “Lindo Horizonte”, não se sabe ao certo, próxima de onde hoje é o grande lago salgado sul. Essa construção nos demonstra que, em um mesmo prédio havia até 50 compartimentos de, em média, 80 metros quadrados, onde se agrupavam até 50 jovens por compartimento! Esses jovens, amontoados nessas salas, chegavam pela manha, ficando até cinco horas nelas.

Não se sabe ao certo o que faziam. Algumas pesquisas antropológicas teimam em afirmar que eram dadas aulas: longos discursos de especialistas ouvidos passivamente pelas pessoas assentadas. Pesquisas recentes refutam essas teorias. Já foi demonstrado ser impossível a um jovem ficar mais de uma hora ouvindo alguma coisa sem ter fortes dores no corpo ou compulsões irresistíveis para andar, correr ou pular.  Baseados nessas pesquisas, cientistas políticos defendem a tese de que essas construções de salas eram equipamentos políticos de controle de massas de jovens, objetivando manter a situação de privilégios de grupos dominantes na época.

De qualquer forma, educadores, de modo geral, concordam que essas estranhas construções podiam servir a vários fins, menos à educação. Para o aproveitamento de 30% de um discurso, um jovem necessita participar com diálogo em, pelo menos, 30% desse mesmo discurso. O jovem aprende quando pergunta, critica, refuta, duvida.

Num lugar fechado, com mais de 40 pessoas e somente uma discursando, é impossível obter esse índice de aprendizado. Assim, se o aprendizado ficava abaixo de 30%, esses lugares poderiam ser qualquer coisa, menos uma sala de educação.

Em outros sítios arqueológicos, foram encontrados escombros desse tipo de instituição com mais de 100 salas! Admite-se que havia instituições que contavam com mais de 5000 jovens reclusos, ao mesmo tempo, num período de 5 horas por dia!

Fragmentos de objetos marcados por símbolos, tidos como forma de comunicação, mostram que ensinavam rudimentos de filosofia, destacados como especialidades, denominados matemática, física, química, entre outros. Especialistas discutem se é possível construir um discurso lógico e inteligível sobre qualquer uma dessas especialidades sem a referencia de outras, como fazemos hoje nesse saber que chamamos Filosofia. Parece que, no século XX, os saberes eram isolados, possuindo identidade própria, sem uma referencia mútua explícita!

Sabe-se, por exemplo, que os números – demoniados matemática ou cálculo na época – eram estudados sem a prática da música. É provado que a música não era admitida nesses locais com regularidade, pois em pouquíssimas instituições foi encontrado algum fragmento de instrumento musical. Da mesma forma, objetos artísticos deviam ser proibidos, pois todos os que foram encontrados se acham em instituições de aspecto mais antigo e com evidentes obstáculos para acessos de público mais numeroso.

De qualquer forma, o grande enigma dessas instituições continua sendo o que ocorria nas salas. Simulações realizadas nos processadores de realidade virtual cruzaram várias variáveis referentes ao clima (clima médio de uma aglomeração populacional da época em torno de 30 graus), nível de ruído, energia produzida e dissipada por 40 jovens de 17 anos, variáveis compartimentais, variáveis psicológicas e um ponto de referencia, que seria um adulto responsável pelo discurso. O resultado virtual dessa simulação mostra uma cena que, no período de uma hora, esse centro de referencia (o adulto que faz o discurso) é reconhecido por todos ao mesmo tempo, em média, durante apenas 5 minutos. Nos outros 55 minutos, em média, apenas 10% das quarenta pessoas reconhecem o adulto como centro de atenção. Os outros 9% olham para outras coisas, menos para o adulto. Com o passar das horas o adulto fica cada vez mais esquecido, de tal modo que, na terceira hora ninguém mais percebe com atenção sua existência.
Se esse adulto hipertrofiar sua presença elevando o volume do seu discurso, agitar-se freneticamente na frente dos jovens, mover-se de um lado para o outro, provocar a fala dos jovens, o nível de atenção sobre para dez minutos de atenção de todos na primeira hora e, nos outros 55 minutos, a média de pessoa atentas vai para 20% dos quarenta jovens. Na terceira hora, ele consegue 5% de atenção e, na quarta hora, cai em total esquecimento.

Entretanto, quando monitoramos o gasto energético desse adulto, observamos, pelos padrões físico e de saúde atuais, que ele não consegue realizar essa performance por mais de três dias. Ou seja, a cada três dias, esse adulto frenético e falador que objetiva ter a atenção dos jovens estaria esgotado energeticamente e deveria ser substituído. Considerando número de jovens nesse tipo de instituição em relação ao numero de adultos, chega-se a um impasse: ou o adulto frenético é uma variante teórica que nunca teve uma existência real, ou 80% dos adultos dessas sociedades eram capazes de realizar esse trabalho – pois só assim haveria recursos humanos para substituir os que entravam em falência energética.

A primeira opção parece mais condizente com as antigas sociedades. Poucos adultos ligados a esse tipo primário de trabalho hipertrofiavam sua atividade e nunca o faziam seguidamente.

Outra hipótese trabalhada foi a diminuição da atividade do jovem. Essa possibilidade pressupõe que o jovem da época, por motivos desconhecidos, tinha menos energia disponível do que o padrão biologicamente definido pela ciência do desenvolvimento humano. Todas as pesquisas comportamentais realizadas com animais jovens demonstram uma capacidade energética, em média, 40% acima de um adulto. Para um jovem ficar 4 horas em um compartimento com mais de 40 pessoas, assentado, ouvindo um discurso, sua atitude deve se equiparar ao comportamento de um indivíduo de 50 anos.l o atual estudo é feito para se conseguir saber como era possível isso. Imagina-se que a cultura da época era um dos fatores que contribuíam para essa passividade.

Enfim, a existência de um dispositivo educacional chamado sala de aula no século XX é um enigma. Da mesma forma, o adulto responsável pelo discurso aos jovens, o educador, é um mistério. Muitos dizem que não existia educador na época. Pelos conflitos sociais que a história nos informa, pela desorganização daquelas sociedades, guerras, degradação ecológica e outros fatores de desagregação social, torna-se efetivamente difícil demonstrar que havia pessoas exclusivamente dedicadas à educação. Ou, hipótese levantada pelos filósofos sociais foi exatamente graças a esses profissionais da educação, que aquelas sociedades não atingiram o estado de barbárie. Afirmam que foi graças a eles que a destruição total – que sabemos ter sido tecnologicamente possível naquela época – não ocorreu.

NO ANO DE 1998

Agora, são oito horas da manhã, um dia chuvoso de fevereiro. Milhões de crianças e jovens no Brasil estão em suas salas de aula, possibilitando que se realize a prática da educação. Professores e alunos pouco pensam que, num futuro distante, estarão sendo estudados como parte de um fenômeno incrível. Nossa sociedade se caracteriza por vários aspectos, todos distintos e espetaculares. Entretanto, nosso espaço e tempo de educação é um dos mais fantásticos.

Desenvolvemos uma tecnologia absolutamente atípica de transmissão de conhecimento, caracterizada pela aglomeração de pessoas em um espaço físico, sob comando do professor. Sob sua tutela, 30, 40, até 60 pessoas, com idades entre 7 e 18 anos – se contarmos o ensino de primeira e segunda sérias – passam até 5 horas aprendendo.

Seja lá qual for o método, seja lá qual for a técnica, é uma tecnologia difícil de ser entendida, se adotarmos o ponto de vista de quem não vive nessa sociedade.

Absolutamente integrados, professores e alunos realizam o milagre da existência da sala de aula. Uma integração tensa, sutil, delicada e sempre reformada. Uma interação renovada a cada intervalo; negociada a cada nova matéria; gerida nos detalhes de um olhar, de um silencio, de um sorriso. Se formos medir a rede de interações desse espaço, interações afetivas, emocionais, psicológicas, precisaríamos de computadores capazes de trabalhar com a matemática do caos.

Portanto, o propósito de uma sala de aula vai muito além desse que todos os educadores hoje podem imaginar. Como profissionais vinculados essencialmente ao conhecimento, à sua transmissão, discussão e entendimento, o educador hoje faz do espaço institucional que lhe é dado – uma sala – no tempo estabelecido – o tempo letivo – a interação necessária para desenvolver a consciência das crianças e jovens. Qualquer outro propósito é secundário em relação a esse. Qualquer obstáculo é superado para que isso ocorra. Nenhuma outra explicação pode responder de forma ampla por que existe uma sala de aula. Todas as possibilidade de degradação presentes na sociedade contemporânea, que apontam para crises dramáticas, são amenizadas porque educadores passam algumas horas nesse espaço, sob a égide do conhecimento.

P.S. – Este texto é uma crônica. Como ficção, não apresenta dados e informações reais.

Paulo Volker é
Filósofo, Cientista Político, Professor Universitário,
Consultor dos Tribunais de Justiça dos Estados de Minas
Gerais e Rio de Janeiro. Gerente Técnico do Projeto
Brasil/Itália para desenvolvimento de Distritos Industriais
(Bid/Promos/Sebrae).
Volker, Paulo. A dinâmica da educação. Belo Horizonte: editora Universidade, 2000. 96p. (p.15-18)

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