quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Ser ou estar: That is the question

Neste artigo, publicado pelo Prof. Paulo Volker, no seu livro, A Dinâmica da Educação, em Belo Horizonte, Editora Universidade, 2000, trata sobre o percurso das reflexões do homem sobre seu estado de sujeito ou de assujeitado. Volker  faz uso da peça Sheaksperiana para tratar do capitalismo, do socialismo e a sua interseção com a educação e o ato de educar.
Vale a pena ler.
Ser ou estar:
That is the question

I
No ato terceiro, Hamlet já entra dizendo:
Ser ou não ser, eis a questão! Que é mais nobre para o espírito: sofrer os dardos e setas de um ultrajante fardo, ou tomar armas contra um mar de calamidades para pôr-lhes fim, resistindo?
Ser ou não ser era o problema do jovem príncipe, mas penso que hoje o problema é ser ou estar, eis a questão.
Vamos tomar o ser como a essência e o estar como a contingência. Vamos imaginar que Hamlet tenha de, por contingência, carregar “ultrajante fardo” (saber que Cláudio matou o seu pai para ter o trono), mas sua consciência, sua vontade, seja de “tomar armas contra um mar de calamidades” (vingar o assassinato). Essa situação caracteriza a sua dúvida: ser ou não ser? Para ele, ser significa realizar aquilo que sua consciência e vontade indicam, ou seja, obedecer à orientação dada pelo seu pai, que lhe apareceu como espectro. Mas ele não pode ser. Não pode ainda realizar o que manda a sua consciência. Desta forma, não sendo, passa a estar na corte fingindo de louco.
Vale a pena ler a versão de Shakespeare sobre Hamlet; para quem se coloca a questão do ser e do estar, é uma fone de muitas reflexões. A partir dela, penso que é possível esta sem ser. O estar se refere à expressão de atributos secundários e contingentes. O ser se refere à expressão de atributos essenciais. Assim, não se deve definir alguém pelo contingente, mas sim pelo que é essencial.
É possível pensar, então, que alguns patenteiam, na vida, seu aspecto circunstancial – são aqueles que estão alguma coisa que não são; enquanto outros, pelo contrário, revelam o seu ser.
No âmbito da educação, pergunto-me: Quantas pessoas estão professores agora, na frente de seus alunos, e não são educadores? Quantos educadores estão em condições limitadoras, com potencialidades importantes embotadas? Quantos educadores estão mergulhados nas suas contigências e atributos menores, deixando de lado suas competências? Quantos educadores não sabem como se livrar disso?
Se essas perguntas são pertinentes, vale a pena pensar essa relação entre ser e estar. Vale o risco da reflexão sobre esse problema se, para os leitores, isso contribuir para mais lucidez.

II
Tudo hoje muda rapidamente. Empresas são criadas para durar seis meses; produtos são produzidos para durar alguns minutos; construções são feitas para serem demolidas daqui a alguns anos. No momento em que o olhar das instituições e, por decorrência, das pessoas, tem o mundo como ponto de vista, passamos a acompanhar cada inovação, cada novidade que surge, tanto em Nova York, qianto em Singapura. Realizamos in totem a idéia da “aldeia global”.
Puxadas pela “revolução permanente” da tecnologia, todas as pessoas são levadas a se integrarem nessa nova forma de ser no mundo. Idéias consideradas perigosas há alguns anos, revolução e mudança, passam a ser as palavras de ordem das instituições, que entendem ser impossível sobreviver se não estabelecerem um fluxo permanente de relação com elas. Muda-se a cada ondulação do mercado ou da conjuntura, porque uma instituição pode deixar de existir se não se adaptar.
Nesse quadro, todas as pessoas são obrigadas a pensar nas mudanças, a se adaptar a elas, a tentar elucidar o que ocorre e como corre. São levadas a pensar em como mudar, como realizar, elas próprias, as revoluções necessárias para entender esse mundo de revoluções.
III
O marxismo é um desses paradigmas que, independente de nossa concordância, deve ser estudado e refletido. Pode-se abordá-lo de várias maneiras e sua história é a justa medida dessas várias interpretações.
O corpo da obra de Karl Marx foi usado e fragmentado ao bel prazer da política, das moedas e das academias, servindo para justificar “gregos e troianos” em suas ações confessáveis e inconfessáveis pela história afora. Já anunaciamos a morte do marxismo, já exumamos o defunto e o devolvemos à terra várias vezes. Muitos que esperavam o “terceiro dia” para a ressurreição se decepcionaram.
Hoje, impressionam-me os adágios famosos dos marxistas. Veja este:
Os filósofos até hoje se limitaram a interpretar o mundo, trata-se de transformá-lo.
Podemos dizer que os filósofos até hoje se limitaram a citar a décima-primeira tese contra FEUERBACH. Trata-se agora de criticá-la. Quando, em 1845, Marx escreveu as 11 Teses contra Feuerbach, fazia sentido convocar todos os pensadores para deixar de interpretar o mundo e tratar de transformá-lo. Afinal, classes sociais haviam se delineado de forma inédita na história, configurando o que os revolucionários entendiam como a grande luta final por uma sociedade mais justa.
A filosocia tinha alcançado a forma mais elaborada com o sistema hegeliano e Marx entendia que não cabia mais uma “visada” totalizante e sistemática, ao modo tradicional. Desta forma, o trabalho do filósofo não poderia se ater ao movimento que vai do concreto ao abstrato, a conceituação. Das ruas vinha o chamado pela melodia da ‘Internacional’, que agitava as bandeiras vermelhas dos operários, comandados por uma elite apaixonada por uma utopia secularizada.
Até então, as utopias escatológicas, que diziam do fim da história, para o início de uma nova época, tinham todas um fundamento místico e sagrado. As várias teorias socialistas, nas quais se inclui o marxismo, racionalizaram a contestação à sociedade, retiraram o sagrado das ações e processos e apontaram o futuro redentor como parte das “leis naturais de desenvolvimento social”.
Marx e outros utópicos (Fourier, Saint-Simon, Owen, Proudhon e Bakunin), que nunca se entenderam, apontavam para uma sociedade justa, em que cada um receberia de acordo com sua necessidade e de acordo com sua produtividade. Uma sociedade sem salários, sem oprimidos, sem miséria; em que as pessoas dedicariam seu tempo, ora para pescar, ora trabalhar, ora adquirir cultura.
Na época, essas idéias tinham um sentido concreto. Marx as via como uma irreversibilidade histórica, pois os modos de produção se sucediam como as estações do ano, e a primavera comunista parecia estar despontando, após o inverno capitalista.
Marx morreu em 1883 e não viu primavera nenhuma e quando Lenin, então na antiga São Petersburgo, formulou as famosas “Teses de Abril” (“todo poder aos Sovietes”), muitos acharam que era os Bolcheviques as flores que anunciavam a nova estação. E esperaram vê-las também na Hungria da Bela-Khun; na Itália de Gramsci; na Alemanha de Rosa Luxemburgo. Mas não viram nada. A primavera revolucionária não vinha e tempestades negras tomaram os céus dos utópicos contemporâneos.
O totalitarismo, na forma de fascismo, do nazismo e do comunismo, se constituiu como um duro golpe para aqueles que esperavam uma idade de ouro para a sociedade. A denúncia dos crimes estalinistas, a partir do XX Congresso do Partido Comunista Russo, em 1956; o reformismo; a retirada do comunismo da pauta imediata dos partidos de esquerda e, finalmente, a denúncia dos estudantes de Paris, em 68, de que os operários foram os últimos a aderir à revolta, acabaram com a utopia da classe revolucionária.
Os filósofos que deixaram de interpretar o mundo para transformá-lo conseguiram, com certeza, humanizar um poucco o capitalismo, mas não fizeram a revolução que criaria uma nova sociedade. A décima-primeira tese não impõe nenhuma necessidade de se perguntar quem é esse filósofo que deve modificar o mundo; quem é esse que quer mudar o mundo. A história mostrou que uma grande parte dos “revolucionários” eram pessoas extremamente autoritárias, com comportamentos profundamente conservadores e, em certos casos, capazes de massacrar o povo que antes defendiam. O próprio Marx, denunciado pelo seu pretenso genro, Paul Lafargue, é um exemp-lo. Outro exemplo é Stálin.
Ou seja, apesar de nomes como Rosa Luxemburgo, Gramsci e Lukács, entre outros, representarem tipos ideais de luta e dedicação, e terem efetivamente participado das lutas operárias em seus países, hoje podemos cobrar a aplicação da décima-primeira tese nos próprios filósofos, formulando a seguinte idéia: o filósofo deve, para transformar, ser capaz de se interpretar.
IV
Todos estão no mundo, mas nem todos são do mundo. Estar no mundo, essa condição absolutamente inalienável do homem vivo, diz respeito à presença dos que nasceram, independente do que façam, independente do que são. O escravo e o senhor, o demente e o gênio, o virtuoso e o criminoso são tipos que estão no mundo, como estiveram no passado e, com certeza, estarão também no futuro. Quando nos referimos ao estar, estamos apontando para essa pura e simples presença de alguém entre os homens.
Ser no mundo, pelo contrário, é uma conquista, um trabalho. É necessário um esforço a mais para ser, já que ser exige ultrapassar o simples estar. E essa ultrapassagem não se dá sem uma revolução. É necessário derrubar, subverter o estado de estar e instituir um novo estado, o estado de ser4.
Se falarmos de revolução, falamos de marxismo. Repensando, através desse artigo, um pouco da fantástica história do movimento marxista no mundo – com seus lances de absoluta ousadia, capacidade de organização e análise e os momentos de muito sofrimento e terríveis enganos – é possível arriscar dizer que, se as formulações da teoria se mostraram ineficazes em revolucionar as sociedades, parecem-me extremamente capazes de revolucionar as pessoas.
Com certeza, os epígonos do museu marxista irão arrancar os cabelos com mais essa “revisão, mas vacinados que estão, depois de tanto “renegados”, de Kautski no final do século XIX, até Castoriadis atualmente, não passaremos de mais um.
Acredito que ninguém poderá negar que a formulação marxista levantada (os filósofos até hoje se limitaram a interpretar o mundo, trata-se de transformá-lo), foi muito pouc eficaz ao ser aplicada na tentativa de mudar a sociedade, mas poderia ser extremamente útil, se aplicada em cada um de nós.
V
Na cena II do Ato Quinto, Hamlet diz para Laertes:”
Aquilo que fiz, que pudesse irritar pela rudez vosso bom natural, vossa honra, vossa distinção, aqui declaro, foi ato de loucura. Foi Hamlet quem ultrajou Laertes? Nunca Hamlet. Se Hamlet estava fora de si e, não sendo ele mesmo, ofende Laertes, não é Hamlet quem faz semelhante coisa: Hamlet a renega. Quem o faz então? Sua loucura, e, sendo assim, Hamlet é da facção ofendida, sendo sua loucura inimiga do pobre Hamlet.
Nesse momento é revelada toda a luta do jovem príncipe entre o ser e o não ser, entre o ser e o estar. Caracterizado como loucura, o estar de Hamlet, ele diz, não é ele, expressa-se por conta própria, contra ele.
Quantos estarão vivendo essa loucura? Penso que Marx se insurgiu contra ela, a loucura da exploração do homem pelo homem, que, para ele, era uma circunstância da sociedade capitalista. Para ele, a liberdade era a verdadeira essência da sociedade, que o capitalismo, uma circunstância histórica, impedia de se revelar.
Esse ideal de mudar a sociedade foi por terra. É mais fácil resolver um problema na corte, como revela Shakespeare em Hamlet, do que revolucionar a estrutura da sociedade. Muito dos problemas do marxismo diz respeito à simplificação do que é a estrutura social. Não basta um grupo tomar o poder do Estado. Se as pessoas continuam as mesmas, não haverá possibilidade de organizar uma nova sociedade.
O marxismo, em muito da sua teoria ou das suas teorias, será muito útil para a modificação das pessoas. A dialética entre o ser e o estar, com certeza será muito melhor elucidada por uma teoria materialista dialética da história da pessoa na sociedade. Ou seja, uma teoria que tenha como base o que as pessoas efetivamente fazem, como constróem concretamente suas vidas. Um fazer sempre contraditório, em que a essência e contingência se alternam no contexto das várias relações com outras pessoas.
Os educadores deveriam estudar o marxismo. Agora que sabemos que a aventura de voluntários a salvadores da sociedade não dá resultado positivo, podemos reler Marx como um pensador preocupado com o homem e suas contradições. Deveríamos ler, além da décima-primeira tese contra FEUERBACH, a terceira. Ela diz:
A doutrina materialista sobre a mudança das contingências e da educação se esquece de que tais contingências são mudadas pelos homens e que o próprio educador deve ser educado. Deve por isso separar a sociedade em duas partes – uma das quais é colocada acima da outra. A coincidência da alteração das contingências com a atividade humana e a mudança de si próprio só pode ser captada e entendida racionalmente como praxis revolucionária.
A praxis revolucionária foi o que Hamlet fez para fugir da sua loucura; é o que todos deveriam fazer para estabelecer uma nova relação entre  ser e não ser, ser e estar. Esta é a questão.

Bibligrafia
SHAKESPEARE, W. Obras Completas. São Paulo: Editora Abril, 1978.
MARX, K. Os Pensadores. São Paulo: Editora Abril, 1978.
HORBSBAWAN. E. História do Marxismo. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1980.
MARCLALLEN, D. História do Marxismo. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1990.

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