domingo, 7 de novembro de 2010

O desenvolvimento humano como busca da felicidade*

Segundo Aristóteles, a felicidade constitui o fim último a que todos os outros se subordinam.

O progresso material garante felicidade? A resposta é controversa e depende em parte de questões empíricas relacionadas à sua mensuração.

Concepções da felicidade na filosofia:
A principal preocupação ética na antiguidade era como viver bem, no que consiste uma boa vida. A idéia mais ingênua sobre a felicidade é que esta corresponde à satisfação dos desejos, isto é, à felicidade hedônica.

A imprensa leiga e a televisão estão saturados de reportagens, editoriais e comentários sobre o individualismo, o materialismo e o hedonismo da cultura contemporânea.

A saída hedônica constitui-se como um beco sem saída. Nem todos os desejos são moralmente justificáveis e ainda assim a satisfação dos desejos deveria ser contínua, prolongada, eterna.
O estado de satisfação permanente dos desejos implicaria na ausência de desejos e esta desencadearia o tédio ou pelo menos um desejo adicional: o de voltar a desejar.

Parece que a mais elementar análise filosófica sugere uma natureza humana que implica num ciclo infindável envolvendo os desejos e sua insatisfação.

Há que moderar os desejos, analisar as conseqüências futuras de sua eventual satisfação e aderir apenas aqueles cuja satisfação não se correlacione com o sofrimento futuro.

Para Aristóteles a felicidade é “uma atividade da alma que expressa a virtude”, dessa forma não corresponde a um estado passivo. O ser humano é feliz na medida em que realiza a obra da sua vida. É necessário que a pessoa tenha atingido certa etapa na vida para poder começar a considerar se é feliz ou não.

Na perspectiva estóica, a sabedoria consiste em limitar os desejos ao que depende do próprio individuo – a sua vontade. Logo, não desejar o que não está ao seu próprio alcance.

Na perspectiva contemporânea cognitiva, o que causa o estresse não são os eventos, mas a interpretação subjetiva que o sujeito faz sobre eles – como evento que excede a sua capacidade atual de enfrentamento.

Concepções da felicidade nas ciências sociais e comportamentais: hedonismo versos eudemonismo:

O hedonismo, em psicologia, preconiza que o bem estar corresponde à felicidade subjetiva, a qual consiste da experiência de prazer contraposta à de desprazer.
Constituiriam de 3 componentes:
1) Satisfação com a vida
2) presença de afeto positivo
3) Ausência de afeto negativo
Essa soma corresponde à felicidade.

A concepção eudemonica ultrapassa a mera busca ou consecução de prazer, consistindo numa verdadeira busca pela perfeição relacionada com a realização do potencial individual.
Do ponto de vista da personalidade, o bem estar subjetivo depende de traços relacionados com a auto-regulação emocional, a sociabilidade e o modo como os indivíduos interpretam subjetivamente a natureza dos eventos.

O nível sócioeconomico correlaciona-se com a felicidade eudemonica, independente da idade.

Estudos são sugestivos de que as dimensões hedônica e eudemônica da felicidade pode variar de modo sistemático conforme a fase do ciclo vital e características sociodemográficas.

A concepção eudemonica, em especial, reveste-se de implicações terapêuticas. Mas como a questão do paradoxo da felicidade tem sido abordade nas ciências sociais e comportamentais?

Modelo de ajuste x modelo de racionalidade econômica:

No modelo de ajuste cada individuo possui um nível ótimo de bem estar, o qual pode ser, ao menos parcialmente, geneticamente determinado. Os eventos vitais podem se constituir em perturbações que afastam o individuo da sua gama ótima de funcionamento.

Dados confirmam que a qualidade de vida e sentimento de vem estar se mantem, ao longo da vida, apesar de alguns percalços como doenças, situações e envelheciment.

Se a felicidade é determinada mais por fatores subjetivos do que por fatores objetivos, externos, então sempre pode haver alguma coisa que se possa fazer para ajudar a pessoa e melhorar o seu bem estar. Por pior que esteja a situação objetiva, sempre é possível contar com a atuação de mecanismos autopoiéticos ou reparadores. O desenvolvimento humano é um processo epigenético.

 Modelo Racional econômico – a felicidade é uma função de utilidade, ou seja, quanto mais bem estar material se acumula, maior deve ser o bem estar subjetivo.

A questão da relação entre afluência e bem estar subjetivo é emblemática.
O nível de bem estar subjetivo de uma população em relação à renda (PIB) sustenta-se apenas até determinado patamar, acima do qual a renda deixa de acrescentar à felicidade.

Duas parecem ser as ordens de fatores que influenciam as percepções de felicidade:
a) fatores subjetivos, determinados tanto pela constituição genética quanto pela experiência individual,
b) fatores objetivos, relacionados principalmente às circunstancias externas, ao bem estar material.

A felicidade na perspectiva do ciclo vital:

Dependendo dos ciclos da vida do indivíduo, em qual fase da vida que o individuo se encontra, ele se comportara de forma diferente, especifica, com relação à felicidade.

Infância: A maturação orgânica da criança por não estar ainda desenvolvida neurologicamente faz com que a criança não perceba o tempo futuro como possibilidade de gratificação e a criança quer ser feliz agora. Não consegue renunciar a nada porque não consegue renunciar (Dependência de maturação de circuitos pré-frontais, relacionados com a capacidade de inibir respostas prepotentes e de direcionar o comportamento a uma meta projetada para o futuro).

Adolescência – a falta de integração entre os aspectos cognitivos e afetivos é um fator adicional que caracteriza o juizo dos adolescentes. Os circuitos dopaminérgicos mesocorticais ativados respondem pelo surgimento do pensamento formal, a ativação dos circuitos mesolimbicos correlaciona-se com as características motivacionais e comportamentais dessa fase da vida: hedonismo, busca de sensações, curiosidade, desejabilidade para correr riscos, etc.
A pouca experiência acumulada e a perspectiva temporal de quem tem a vida pela frente também contribuem para o comportamento de moratória, de usufruir agora para pagar depois. A capacidade de postergar a gratificação pode depender, como mencionado anteriormente, das circunstâncias de vida, mas certamente depende da maturação de circuitos pré-frontais, relacionados com a capacidade de inibir respostas prepotentes e de direcionar o comportamento a uma meta projetada no futuro (SpearR, 2000).

Meia-idade – a perspectiva temporal muda à medida que o individuo acumula experiência e vai avançando no ciclo vital. A análise realizada indica que a sabedoria mais adaptativa para a meia-idade só pode ser a eudemonia – uma concepção de felicidade que enfatiza a atividade, a vida como uma obra a ser realizada.

Felicidade na velhice – “chegou a hora de pagar os juros da moratória” – Os efeitos do envelhecimento físico e cognitivo podem ser mais ou menos drásticos, mas o balanço dos ganhos e perdas sempre acaba se invertendo para um predomínio das perdas sobre os ganhos.
As pessoas idosas tendem a se concentrar nos valores e relacionamentos mais significativos, voltando-se, portanto para o self como fonte de felicidade.

“Qual a forma de lidar com as discrepâncias entre aspirações e realidade? Há 2 modos básicos de reduzir ou anular essa incongruência. Um deles é adaptando e moldando os nossos desejos ao curso dos acontecimentos; e o outro é transformando as circunstancias com que nos deparamos de modo que atendam aos nossos desejos.” (Gianetti, 2002. p.38)


Alguns fatores que se correlacionam de fraca a moderadamente com o bem-estar subjetivo foram identificados por DeNeve (1999) em pesquisas metanalíticas:
  • Educação: o nível educacional se correlaciona moderadamente com o bem-estar subjetivo, mas relação é mediada pela renda e pelo status ocupacional;
  • Renda: com raras exceções, uma correlação positiva também é encontrada entre a renda e o bem-estar subjetivo. As pessoas afluentes são mais felizes do que as pessoas pobres, mas a relação pode não ser linear. O poder aquisitivo pode, também, ser um determinante mais poderoso do bem-estar subjetivo para as pessoas de meia idade do que para os indivíduos jovens.
  • Atividade social: as pessoas socialmente mais participativas relatam níveis mais altos de bem estar-subjetivo, indicando que o envolvimento com atividades sociais se correlaciona positivamente com o bem-estar subjetivo. A participação social aumenta o bem-estar, mas o bem-estar motiva as pessoas a participarem socialmente;
  • Religião: indivíduos religiosos referem níveis maiores de bem-estar subjetivo (Meyers, 2000).

Modelos de felicidade nas ciências sociais e comportamentais: ponto de ajuste versus racionalidade econômica

Segundo o modelo do ponto de ajuste, cada indivíduo possui um nível ótimo de bem-estar, o qual pode ser, ao menos parcialmente, geneticamente determinado, mas mantêm-se regulado pela media da maioria da população ou do grupo o qual pertence o indivíduo. Por exemplo, diabéticos, problemas de epilepsia, insuficiência renal crônica, etc.  O grande atrativo do modelo de ponto de ajuste é o otimismo terapêutico, pois, o desenvolvimento humano é um processo epigenético e mesmo naqueles casos em quem a carga genética opere desfavoravelmente, pode ser possível lançar mão de mecanismos moderadores para compensar os seus efeitos.

Em contraposição ao modelo do ponto de ajuste, a teoria econômica clássica prevê um modelo racional de “quanto mais, melhor”(Easterlin, 2003), ou seja, quanto mais bem-estar material se acumula, maior deve ser o bem estar subjetivo. Assim, quanto mais alto o PIB de um país, mais altos os níveis de bem-estar da população, pelo menos até certo limiar, a partir do qual a renda deixa de acrescentar à felicidade.  

Os dados obtidos de pesquisas nas ciências sociais e comportamentais apontam para a existência de pelo menos duas concepções de felicidade, as quais não são mutuamente exclusivas, o conceito hedônico e o conceito eudemônico.

A felicidade do cérebro

Quais são os mecanismos neurobiológicos proximais que implementam as experiências hedônicas e eudemônicas de felicidade no cérebro?

Um modelo contemporâneo sugere que os dispositivos hedônicos cerebrais estão relacionados ao desejo e à fruição. O desejo ou expectativa de prazer está relacionado à ativação dopaminérgica de um circuito límbico com epicentro na medula (core) do núcleo accumbens (NAc), enquanto a experiência de prazer ou fruição depende da ativação opióide-gabaérgica de uma rede neuronal subcortical cujo lócus principal é a cortical (Shell) do nucleus accumbens.

A felicidade eudemônica adviria do fato de que os mecanismos pré-frontais antecipadores das conseqüências e reguladores do comportamento podem cooptar os mecanismos hedônicos. Dessa forma, é possível formular a hipótese de que os mecanismos eudemônicos da felicidade dependem de uma mediação cognitiva implementada pelo desenvolvimento das áreas pré-frontais relacionadas ao funcionamento executivo.

Do ponto de vista onto e filogenético, a felicidade eudemônica pode depender do desenvolvimento de circuitos pré-frontais que amadurecem lentamente até a terceira década de vida e que são desenvolvimentos relativamente recentes na árvore evolutiva das espécies.

O adolescente, especialmente, possui progressos significativos no domínio cognitivo, caracterizados principalmente pelo desenvolvimento do pensamento operacional formal e da memória de trabalho, que contrastam com a relativa imaturidade emocional e motivacional, ilustrada pela instabilidade emocional, busca de novidade, sensação e risco, bem como por decisões temporalmente míopes.

Um enfoque neurobiológico pode ajudar a resolver o paradoxo da adolescência, que é apenas aparente. Spear (2000) sugeriu que as características cognitivas do comportamento adolescente podem ser atribuídas ao desenvolvimento do córtex pré-frontal dorsolateral e via meso-cortical, enquanto as características motivacionais se relacionam a uma imaturidade relativa ou disfunção da via mesolímbica. Ritmos diferenciais de desenvolvimento das estruturas cerebrais subjacentes poderiam explicar então o descompasso aparente entre a cognição e a afetividade na adolescência.

O exame dos mecanismos neurobiológicos de regulação emocional subjacentes às motivações hedônicas e eudemônicas demonstrou que os mecanismos evolutivos selecionaram numa série de mecanismos adaptativos que permitem tanto a felicidade quanto a infelicidade. Há algum sentido nisso?

Considerações finais:

A busca pela felicidade constitui ao mesmo tempo uma obsessão motivacional entre  os humanos e uma armadilha evolutiva. A ideologia iluminista sugeriu que seria possível concretizar um estado de bem-aventurança na Terra por meio do progresso material e social. Mas, as diversas engenharias sociais, socialistas e capitalistas não conduzem forçosamente à infelicidade, tampouco não parecem ser capazes de conduzir necessariamente à felicidade.

As observações psicológicas e filosóficas destacam que a busca pela felicidade varia sistematicamente ao longo do ciclo vital. O hedonismo predomina na infância e adolescência, sendo substituído gradualmente ao longo da vida adulta por uma concepção eudemônica de felicidade como realização. No final da vida pode até haver certo retorno do hedonismo, mas diante dos declínios físicos e cognitivos inexoráveis associados ao envelhecimento, outras concepções de felicidade, como as sabedorias religiosas ou estóicas, entram na ordem do dia.

Do ponto de vida neurobiolígico, mecanismos motivacionais cerebrais foram selecionados para implementar tanto emoções positivas quanto negativas. A felicidade hedônica corresponde aos mecanismos apetitivos e aversivos implementados, na sua maior parte, por estruturas e circuitos subcorticais. A felicidade eudemônica evoluiu, por outro lado, a partir do surgimento de sentimentos e mecanismos regulatórios corticais. Frente a um estímulo com determinado significado instintivo ou valor apetitivo, o indivíduo pode responder ou não, considerando o quadro e as conseqüências futuras da resposta eventual.

O desafio que se lança aos indivíduos e sociedades é realizar o cálculo hedônico, maximizando simultaneamente sua aptidão reprodutiva e sua felicidade no longo prazo. Infelizmente, os seres humanos e suas instituições sociais na maioria das vezes não se comportam como agentes racionais e a experiência acumulada não se transmite automaticamente entre gerações sucessivas. Cada geração e cada indivíduo precisam encontrar por si próprios a solução para o paradoxo da felicidade.


Resumo realizado do cap.31- p. 601 a 636 – O desenvolvimento humano como busca de felicidade, do livro

Haase, Vitor Geraldi, Aspectos biopsicossociais na infância e adolescência/Vitor Geraldi Haase, Fernanda de Oliveira Ferreira, Francisco José Penna. Belo Horizonte: Coopmed, 2009. 656p.


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