segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Cartel, Transferência de Trabalho*

A palavra cartel refere-se a cardo, dobradiça, abertura, porta. Na língua francesa, tem ainda outras impliações – tem um sentido de quando se provocava uma pessoa para um duelo. Existe aqui uma provocação, no sentido de que se delimita um campo e uma regra, segundo a qual as pessoas não vão se estrangular, mas são chamados a falar.
O cartel é uma formação coletiva criada por Lacan, que pretende o estudo das descobertas psicanalíticas de Freud e criar um dispositivo que introduz uma nova lógica, a lógica do coletivo, que se contrapõe aos fenômenos comuns de grupo, qual seja, esvaziar as identificações com os líderes e mestres. Mestres e gurus impedem a elaboração de um saber produzido por cada um para cristalizar uma verdade estabelecida. A lógica do cartel pretende justamente promover a renovação da psicanálise. Esse dispositivo possibilita que se mantenha aberta a porta que dá passagem à dimensão do saber e que cada membro do grupo habite o ensino da psicanálise.
Segundo a Ata de Reunião da Fundação da Escola Freudiana de Paris, em 21 de junho de 1964, o “cartel é, em primeiro lugar, a condição de admissão na Escola”, dito nos seguintes termos por Lacan:
“Aqueles que venham a esta Escola se comprometerão a realizar uma tarefa submetida a um controle interno e externo; se lhes assegurará, nesse intercâmbio, que nada será poupado para que tudo o que eles façam de valioso tenha a repercussão que merecer, no lugar que lhe convenha... o ensino de psicanálise só pode ser transmitido de3 um sujeito a outro através de transferência de trabalho”[1]
Participar de um cartel é se comprometer com um trabalho, uma produção, em suma, uma mais-valia, cujo gozo transita entre o saber e o amor, e pelo amor ao saber. Aí está necessariamente suposto um sujeito. Toma-se um tempo e uma testemunha: a escola e uma pessoa – o analista, suposto saber mais sobre a psicanálise.
Existem regras: primeiro há ritmos de trabalho regulares. Nisso consiste um controle interno. O número de participantes – 3, 4 ou 5 pessoas é prudente no sentido de que, dentro desses limites, o trabalho se mostra como tendo um caráter mais confidencial, mais franco e também mais sério do que em outros grupos.
Há um controle externo, que consiste em cumprir uma tarefa e apresentá-la ao público da escola. O que concerne à organização estrutural do cartel – não implica uma hierarquia com líderes ou castas, mas uma organização circular em cujo funcionamento permite-se discutir as dificuldades do trabalho e os progressos.
Há uma regra no cartel que é a de produzir um trabalho. Quer dizer que não se trata de uma discussão a toa, mas pode conduzir a uma produção que deverá ser posteriormente apresentada. Há a presença de um desejo de compartilhar um saber em torno de um assunto específico. Para que possa ser elaborado um discurso psicanalítico, é necessário que as pessoas não sejam quaisquer pessoas. Elas seriam essencialmente, aquelas pessoas que se ligam por um dos eixos da transferência – o eixo do saber. A transferência tem dois eixos – o do saber, ligado aos significantes e à repetição, e o eixo do amor – ligado ao ser, que é o tipo de transferência que aparece em vários segmentos da sociedade, da polítia e do ensino. No cartel a transferência se dá pela via do saber. É visando responder às suas inquietações que cada um escolhe o tema a ser trabalhado, se engaja em um cartel, e, unidos por essa escolha, entram num acordo. Um acordo implícito e explícito, o desejo de um despertar ao outro mutuamente, quer encontrar o saber juntos, o que tem um efeito de estimulação. É pois, pela via da transferência de trabalho, que pode ser transmitido, de um sujeito a outro sujeito, o ensino da psicanálise.
“O cartel se diferencia do discurso universitário, que tem seus valores mas que se preocupa mais com a erudição e a repetição, e do discurso do mestre, orientado em direção ao poder dos significantes mestres”[2]
Para a elaboração de um trabalho teórico psicanálitico é necessário obrigatoriamente, que um analista tenha um retorno de sua palavra por outro analista. O “mais um” é uma pessoa chamada a compor o cartel, tornando-se uma “pessoa eco” no grupo. Parece ser um analista, que ouve o que é exposto na teoria, mas ele também é um participante que tem seus questionamentos e os expõe, e critica, e provoca a elaboração desse saber.
O “mais um” é aquele que pergunta o que se passa e sobre o que se está produzindo ali. Ele pode estar presente ou ausente em alguns encontros, o que não deixa contudo, de estimular, provocando o desejo. Ele incita a busca da coisa e vai permitir essa articulação, fazendo com que haja sempre o desejo de achar de novo a coisa que será mantida no grupo.
O “mais um” não é um “mais uma pessoa”, pois ele não é um membro do grupo, mas funciona como um significante que funda o desejo.
A função do “mais um” é situar um eixo de transferência, onde o grupo não funcionaria como um grupo de amigos, mas que possam metaforizar para que algo diferente possa surgir. É aquele que garante que as coisas sejam suficientemente metaforizadas paras ser “comunicáveis”, compreensíveis por quem não esteja participando dela. O “mais um” desempenha quase que o mesmo papel que o do analista, ou seja, o de estar lá para permitir que uma palavra seja deita com a castração, um significante, remetendo a todos os outros significantes.
Quando um cartel se forma, um tema é escolhido para estudo, discussão e elaboração de um texto. Será dado um nome a esse Cartel que poderá compor-se por três pessoas, no mínimo, e por cinco, no máximo – quatro é a medida certa. Será convocado o “mais um” encarregado da seleção, da discussão e do destino reservado ao trabalho de cada um.
Ao final de um tempo determinado, o trabalho elaborado pelo “mais um” e por cada membro do grupo, de acordo com o seu interesse e a partir de suas próprias questões será apresentado à escola a que o cartel está vinculado.
O nosso cartel – Cartelo Pulsão – funciona como uma experiência dialética de discurso, a partir de textos que se combinou antes, sejam textos de Freud ou outros autores, e comentários que se produziram. Segue uma orientação básica em cima dos textos e outras pesquisas paralelas são buscadas para a melhor compreensão das questões suscitadas. Seus membros se encontram várias vezes, sucessivamente, e compartilham um saber que aflora sobre um tema.
O trabalho em cartel produz uma maiêutica – algo do nosso saber que tem íntima relação com o saber teórico é colocado para o grupo. Um trabalho só pode ser uma produção, onde a gente se expõe através da teoria. É como no trabalho de análise, cuja palavra produz um efeito a posteriori.
Há também um efeito de resistência, onde produz-se um trabalho como se não se interessasse a ninguém ou que a formulação é ainda insuficiente. Esta produção fica como que “engavetada” e vai sendo exposta a medida que o grupo vai se afirmando e “progredindo”. A intenção é de sedimentar um saber, através da fala que se faz para o grupo, e só mais tarde, o que foi falado ao grupo pode ser dito para uma multidão.
Para a formação do “Cartel Pulsão, os membros se escolheram com base no tema que foi proposto, que suscitava questões a cada um. Alguns encontros se fizerem para escolha do  “mais um”. Em seguida, estabeleceu-se a organização do grupo, no que concerne horários, local dos encontros, texto principal a ser estudado. Devido questões pessoais, ocorreu a auto-eliminação de alguns participantes e o cartel necessitou se reorganizar e iniciou-se o trabalho. Atualmente, completamos o 1º semestre de encontros e estudo.
Percebemos a circulação dos quatro discursos – do mestre, da histérica, do analista e o discurso universitário – como intervenções feitas pelo “mais um”, suscitando busca de respostas às questões levantadas, mobilizando nossa energia.
Talvez em função do tema pulsão que está sendo estudado ou pelo próprio modo de funcionamento do cartel, o que se percebe é uma energia de saber circulante, que gera em seus membros uma busca incessante de conhecimento, expressa nos relatos dos resultados e da experiência do grupo. O comprometimento com o trabalho e com os encontros é visível. Pessoalmente, sinto que o cartel funciona no nível pulsional.
Está presente o tempo todo a possibilidade de se expor – não se exibir, mas falar de si e das suas questões pessoais, ou seja, enfrentar a castração sem risco de morte. Expomo-nos, ao expor a teoria.
Parafraseando Freud, que diz: “O que se vive em transferência, nunca mais se esquece”, eu diria: “O que se aprende em transferência, nunca mais se esquece”.

*Trabalho apresentado em outubro de 2002, no Grep – Grupo de Encontros Psicanalíticos, por ocasião da XVIII Jornada.



[1] Ata de Reunião da Fundação da Escola de Psicanálise de Paris, 1964 – Jacques Lacan
[2] BROUSSE, Marie Hélène,  A Pulsão I e II, p.118

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