sábado, 12 de fevereiro de 2011

A Tragédia e o Gozo

A tragédia e o gozo
Por:  Eliane Z. Schermann

                "Para além de sua origem mítica, a essência da tragédia consiste na até, a fatalidade. Até é um termo grego de difícil tradução e que sugere uma espécie de iluminação violenta assim como, também, é a expressão do inexorável.
            Apesar da progressiva humanização do que podemos chamar de aspecto trágico da existência, o homem nunca deixou de se haver com a fatalidade, a até. A até trágica indica, assim, a ultrapassagem de uma fronteira que situa o herói para além da morte, perpetuando sua existência. O personagem do trágico padece de seu destino até que, em um instante inesperado e fugaz, ele próprio sofre uma reviravolta e não mais será o mesmo que era. É quando, então, inesperadamente, ele se tornou efeito da realização do seu próprio destino trágico. O sentido trágico de responsabilidade do herói emerge de uma zona fronteiriça, denominada, por Lacan, de “entre duas mortes”. Neste espaço trágico no qual submergem e se desvelam como heróis, seus atos, que podemos nomear de quase inumanos, vêem a se articular com os desígnios enigmáticos dos deuses. Podemos nos indagar: que determinação   quase “demoníaca” - termo usado por Freud -   é essa que, agindo no desejo, parece ser quase divina? Será por isso que Lacan nos ensina que os deuses são da ordem do real?
               No limiar de uma decisão o herói trágico é forçado a se responsabilizar pelo seu ato. É quando, ele é ultrapassado por algo imprevisível e, até então, desconhecido. Sua decisão de agir, ou melhor, sua escolha por um determinado ato é um desafio ao futuro, ao destino e a si mesmo. Não sendo pleno senhor e agente de seus atos e de suas decisões, o herói corre o risco de cair na armadilha de suas próprias escolhas, esperando que os deuses estejam a seu favor. Onde estará a responsabilidade por seus atos? Em que podemos aproximar o ato trágico àquilo que a psicanálise trabalha em relação à ética?  
               Optamos por trabalhar a tragédia antiga para tentar responder à questão sobre os determinantes da existência humana. A tragédia é a criação literária que melhor exemplifica a encenação, a colocação em ato do que, com Lacan, nomeamos de gozo. A tragédia antiga expõe a céu aberto o que o inconsciente reluta em dizer. Os heróis, sem terror nem piedade, são movidos por algo distinto do que foi chamado de angústia neurótica. Enquanto a angústia neurótica antecipa signos para advertir o “herói do cotidiano” da proximidade de um perigo inevitável, o herói trágico, isento de angústia, é um joguete dos deuses. Ele é “um instrumento do gozo divino” por estar irremediavelmente imerso no inevitável destino que os deuses lhe determinaram. Lembremos que Lacan nos ensina serem os deuses do real.
            A angústia é um índice da “amarração” do sujeito desejante a um objeto que, ansiado para satisfazer à premência do desejo, paradoxalmente, é um “nada” que, por outro lado, antecipa um “futuro anterior”. Este objeto ansiado pela satisfação pulsional nada mais é do que um “nada” que ultrapassa a ilusão de satisfação por funcionar na causa do desejo. Seu estatuto é de ex-sistência, termo usado por Lacan para abordar a “existência” e a insistência pulsional na busca de satisfação. Enquanto causa de desejo tanto está no interior como no exterior do aparelho psíquico. Melhor dizendo, trata-se de um objeto que, segundo Freud, foi miticamente perdido. Somente podemos dele experimentar a manifestação de sua insistência. É este o nome que damos ao gozo, de um modo geral, por ser o termo lacaniano correlato ao conceito de satisfação pulsional, em Freud. É paradoxal por levar o sujeito além do prazer, à íntima relação com a pulsão de morte. Ao precipitar o sujeito no curso do desejo por ele mesmo desconhecido, o gozo é paradoxalmente o que faz funcionar o saber em termos de verdade.
               A lógica rege a “ex-sistência” ao fazer funcionar o gozo que se furta ao inconsciente estruturado como uma linguagem. Para escapar ao esquecimento e ao recalque, enfim, à estrutura do pensamento inconsciente, o teatro grego expõe a olhos nus, através de seus heróis trágicos, a imagem da “paixão do ser”, dando a ver em que o sujeito é afetado. O que é causa do desejo margeia o profano e o sublime. Trata-se de uma “fatalidade” estrangeira que, dividindo o sujeito do desejo, é determinante do “destino” da sua realidade psíquica, da sua fantasia. Determinante e determinada pela linguagem, a causa, irmã do gozo e das marcas simbólicas que comemoram sua captura, está na origem do que a psicanálise trabalha ao acolher as formações do inconsciente através de sua oferta: - Fale!  "    
                                                                                                                                                          

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