quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Madame Bovary: histeria ou feminilidade?

Introdução:
O propósito deste trabalho é através da obra de Freud, buscar a compreensão da histeria que, talvez por ser mais freqüente entre as mulheres, se confunde com ela e inviabiliza a resposta para o enigma: “O que quer a mulher?”
Para tanto, escolhi a obra literária de Gustave Flaubert,  para trabalhar questões específicas da personagem, que apresenta características tanto histéricas, e por que não dizer, próprias da feminilidade.
Emma é a personagem do romance Madame Bovary, que Gustave Flaubert, criou em 1857, sentenciando que "Madame Bovary somos todos nós!”
Emma Bovary apresenta-se como uma histérica de todos os tempos. Tinha os sintomas como desmaios, anorexias, anestesias e a depressão continuada, mas, acima de tudo, Emma tinha uma personalidade histérica.  Emma possuía uma linguagem carregada de sentido, sentido sexual que a domina e a submete a um desejo eternamente insatisfeito. Possuidora de uma imaginação fértil, fantasia sua própria história, seus amores. Chega a delirar. Emma sonha em ser feliz, e a felicidade para ela só será possível se vinda do outro.
Como qualquer mulher do século XIX, Emma vivia em função de uma dependência paterna que se deslocava para uma dependência ao marido. Emma depositou todas as suas esperanças no casamento, mas rapidamente se decepcionou e se perguntava o que seria a felicidade que tanto apreciara nos livros.   Sabemos que na histeria, a possibilidade de interrogação para a mulher, do seu desejo, está centrada na demanda dirigida ao outro, que é colocado na posição de mestre. É por isso que busca no marido, e depois nos amantes a felicidade. Não se permite conduzir sozinha. Emma vagueia pela vida, quer ter uma outra vida, quer ser feliz, mas não vislumbra essa possibilidade a não ser através do outro. Impossibilitada de confrontar-se com seu próprio desejo, ela permanecia a serviço do desejo do outro.
A paixão é o que alimenta Madame Bovary e é ela que dá sentido à sua vida. Mas a paixão lhe escapa, lhe falta, e em é por falta dela em suas relações, que Emma definhará.  Ela busca incessantemente o falo, seja no marido ou nos amantes, mas depara-se sempre com a castração, com a impossibilidade da completude. No entanto, há aí um gozo, que é o que o histérico satisfaz quando sofre, o gozo de um desejo insatisfeito.
Num jogo de provocação e sedução, desejo e culpa, vergonha e arrebatamento, aproximações e afastamentos ela goza e sofre, faz gozar e faz sofrer. Nela, quanto mais o desejo crescia, mais virtuosa queria parecer. Emma traz em si um desejo inconfesso, de, como nos romances que lera e mesmo em seus sonhos e fantasias, tornar-se amante. Oscila entre puritana e mundana, esposa e amante.
Como amante, ela queria ser a única, ser exclusiva, fugir, romper com sua vida medíocre e encontrar a felicidade total. No amor, Emma era voraz, tirânica e invasora. Na posse do falo-homem, Emma torna-se o próprio falo, amedrontando os amantes, fazendo-os se afastarem. É pela paixão que Emma imprime no outro sua própria imagem, dando-lhe contornos que ali não tem. Tenta fazer do marido o Homem, e assim, tornar-se mulher.
Também nos amantes, coloca na boca deles as suas palavras, escuta nas palavras deles algo que eles não lhe dizem. Tentativa fracassada que remete-a novamente à castração. Lidar com a castração é para Emma tão frustrante que essa caia em depressão, tornando odiável tudo a sua volta e a si mesma. Mesmo que Charles, seu marido, cobrisse-lhe de mimos e de carinho, Emma permanecia tediosa e insatisfeita.
Mas na incessante busca de satisfação, Emma busca outra solução, e assim deseja ter um filho homem, pois vislumbra que para o homem é possível ter uma vida sexual mais diversificada do que é permitido à mulher, e ao homem é dado um acesso a um reconhecimento na sociedade através do trabalho político e social.  Mas Emma é mãe de uma menina. E não é essa mãe que Emma quer ser. Assim, Emma não existe, pois nega a maternidade e para a psicanálise, a mulher só existe enquanto mãe. A mulher não existe.
Sem o filho e o amor que esperava, o tédio e a frieza começam a tomar conta de seu ser.  Por não reconhecer seus próprios limites entra num processo de endividamento, adquirindo objetos valiosos na ilusão de que esses pudessem satisfazê-la. A aquisição desses objetos levou-a a um endividamento impossível de ser liquidado, denunciando, assim, o vazio que trazia em seu ser. Sentindo-se esvaziada, impossibilitada de quitar suas dívidas, não tendo o que doar, restava-lhe somente a morte.
Morrer não era pior do que se render a Charles, seu marido, o Outro a quem ela buscava sempre diminuir, sobrepondo-se a ele, como a seus amantes, tratando-os como crianças tolas, como objetos.
Diante da falta do dinheiro, do respeito e do amor, resta-se a morte como a solução daquilo que sempre procurara e que nunca havia encontrado. Ainda ai, diante da morte, Emma Bovary se engana, pois pensa que morrer é dormir, e tudo estará acabado, mas dilacera-se em dor. Utiliza o arsênico, e na dor da morte, agoniza e goza implicada neste gozo da insatisfação em que está sempre sendo remetida mais adiante. Finalmente, "Uma convulsão abateu-a sobre o colchão. Todos se aproximaram. Ela não mais existia".
Considerações teóricas:
É preocupação de Freud, já presente em seu texto, Projeto para uma Psicologia Científica (1895/1973), questões relativas aos sintomas histéricos, ligados a lembranças traumáticas que envolviam a sexualidade em sua mais tenra infância, e  no seu trabalho A Sexualidade na Etiologia das Neuroses (1898/1973), dedicou atenção especial a este tema, chegando então, a concluir que as histéricas  sofriam de fantasias de amor, um amor que, embora consciente um dia, fora recalcado no inconsciente, advindo daí os seus sintomas. É, portanto, à fantasia que Freud passará a dar maior importância na compreensão da produção de sintomas das histéricas.
Para trabalhar o tema da sexualidade na mulher, Freud percorre longo trajeto: no texto A Dissolução do Complexo de Édipo (1924/1973), Freud desenvolve mais amplamente os aspectos relativos às diferenças entre o menino e a menina quanto à castração, relacionada com o complexo de Édipo e ai conclui que, enquanto a ameaça de castração põe fim ao Édipo no menino, com todas suas conseqüências estruturantes, essa ameaça lança a menina no Édipo, de onde muito mais tardiamente sairá. Freud acaba por reconhecer, então, a importância da vinculação da mulher à mãe e a importância dessa vinculação para a etiologia da neurose histérica. Também em Novas Lições Introdutórias à Psicanálise - A Feminilidade (1933/1973),  a questão da sexualidade feminina ganha novas luzes, pois percebe que a sedução originariamente sofrida pela menina era exercida, na verdade, pela mãe, através da estimulação dos genitais durante a higiene corporal e que as intermináveis queixas das histéricas quanto à própria mãe, derivavam da castração de que elas se sentiam vítimas e que a angústia característica da histérica provém do ódio à mãe que a privou do falo. Falo que mesmo a mulher não cansará de perseguir na forma de um filho ou, até mesmo, na procura de uma análise.
Trabalho produzido para o Seminário de Sexualidade, coordenado por Rosa Maria Abras, no Grep – Grupo de Estudos Psicanalíticos, 2005.
Referências bibliográficas:
Flaubert, G. (1993). Madame Bovary. São Paulo: Nova Alexandria (Texto original publicado em 1857)
Freud, S. (1973). Proyecto de una Psicologia para neurologos. In Obras completas de Sigmund Freud (v. 1, 3ª ed.). Madrid: Biblioteca Nueva (Texto original publicado em 1895).
Freud, S. (1973). Estudios sobre la histeria. In Obras completas de Sigmund Freud (v. 1, 3ª ed.). Madrid: Biblioteca Nueva (Texto original publicado em em 1895).
Freud, S. (1973). La etiologia de la histeria. In Obras completas de Sigmund Freud (v. 1, 3ª ed.). Madrid: Biblioteca Nueva (Texto original publicado em 1896).
Freud, S. (1973). La sexualidad en la etiologia de las neurosis. In Obras completas de Sigmund Freud (v. 1, 3ª ed.). Madrid: Biblioteca Nueva (Texto original publicado em 1898).
Freud, S. (1973). Analisis fragmentario de una histeria (Caso Dora). In Obras completas de Sigmund Freud (v. 1, 3ª ed.). Madrid: Biblioteca Nueva (Texto original publicado em 1905).
Freud, S. (1973). Fantasías histéricas y su relación con la bisexualidad. In Obras completas de Sigmund Freud (v. 2, 3ª ed.) Madrid: Biblioteca Nueva (Texto original publicado em 1908).
Freud, S. (1973). Pegan a un niño. Aportación al conocimiento de la génesis de las perversiones sexuales. In Obras completas de Sigmund Freud (v. 3, 3ª ed.). Madrid: Biblioteca Nueva (Texto original publicado em 1919).
Freud, S. (1973). Sobre la psicogénesis de un caso de homosexualidad femenina. In Obras completas de Sigmund Freud (v. 3, 3ª ed.). Madrid: Biblioteca Nueva (Texto original publicado em 1920).
Freud, S. (1973). La disolución del complejo de Edipo. In Obras completas de Sigmund Freud (v. 3, 3ª ed.). Madrid: Biblioteca Nueva (Texto original publicado em 1924).
Freud, S. (1973). Algunas consecuencias psíquicas de la diferencia sexual anatómica. In Obras completas de Sigmund Freud (v. 3, 3ª ed.). Madrid: Biblioteca Nueva (Texto original publicado em 1925).
Freud, S. (1973). Sobre la sexualidad feminina. In Obras completas de Sigmund Freud (v. 3, 3ª ed.). Madrid: Biblioteca Nueva (Texto original publicado em 1931).
Freud, S. (1973). Nuevas lecciones introductorias al psicoanalisis - la feminidad. In Obras completas de Sigmund Freud (v. 3, 3ª ed.). Madrid: Biblioteca Nueva (Texto original publicado em 1933).



Emma é a personagem do romance Madame Bovary, que Gustave Flaubert, criou em 1857, sentenciando que "Madame Bovary somos todos nós!”

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